O ator e diretor Antônio Pitanga está promovendo o filme “Malês”, que conta a história da revolta contra a escravização promovida por negros islâmicos em Salvador em 1835. Um episódio pouco contado da história brasileira, assim como muitos protagonizados por pessoas negras. “A Bahia é o maior griô da história que o Brasil não conhece”, afirma, lembrando que há muitas outras narrativas que merecem uma filmografia e mais conhecimento por todos nós.
“Malês é apenas o provocador”, ressalta. O diretor lembra que a revolta foi tão importante que os coroneis baianos abafaram o acontecimento durante quatro anos, com medo do Brasil se transformar no Haiti, que tinha vivido uma revolta em 1791, com abolição da escravatura. “Essa e outras histórias o Brasil não conhece. Quero viver mais 120 anos para contar novas narrativas”, almeja.
Para realizar o filme, chamou primeiro seu quilombo: os filhos Rocco e Camila e depois os demais atores. “Nossa memória está na oralidade, mas hoje temos escritores e escritoras para documentá-las”, afirma.
O filme faz um olhar do século 21 para o século 19. Escravos, como aprendemos na época da escola e eram chamados na época do Brasil colônia, são denominados como escravizados, por exemplo. Há humanização dos malês e foco no protagonismo das mulheres. “Não é diálogo do passado e, sim, do presente”, defende Pitanga.
O filme demorou 30 anos para ser produzido. Teve uma paralisação importante por conta da pandemia e um momento de “agora ou nunca”. O longa tem elenco e diretor negros, Lázaro Ramos entre os produtores associados, mas o Brasil não é a Wakanda da ficção e o roteiro é feito por Manuela Dias, autora de novelas da TV Globo que é branca.
História negra não começa na escravização
O filme acompanha um fato real, com licenças poéticas da ficção e até por isso, para quem sabe da história, como o autor desse texto, dá esperança que vá terminar de forma diferente. Não que dê para esperar um final feliz, mas a obra termina de maneira um pouco abrupta.
Malês, no entanto, tem como ponto alto começar a narrativa pela África, lembrando que esses povos que vieram para cá escravizados tinham cultura, religião, conhecimentos e riqueza. A história negra, afinal, não começa com a escravização.
O longa conta com ótimas atuações, drama e romance bastante dosados e uma fotografia linda que nos remete ao século 19, que para o diretor, foi um dos mais importantes da história brasileira. Pitanga rememora que entre 1800 e 1899 foi quando ocorreu a independência do Brasil, que ele ressalta ter sido em 2 de julho de 1823 na Bahia, quando finalmente os portugueses foram expulsos do território brasileiro, e não em 7 de setembro de 1822, em São Paulo, como conta a história oficial.
Além disso, foi nesse período que passamos pela abolição da escravatura e pela proclamação da República. A partir de então os imigrantes chegam para substituir a mão de obra escravizada transformando o Brasil no país que conhecemos hoje.
Malês integra o Festival Oju, roda Sesc de cinemas negros, que ocorre em 19 unidades da capital e interior paulista entre 3 e 11 de setembro de 2025.
O ator já participou de mais de 50 produções cinematográficas, atuando em filmes que contam histórias importantes do povo negro, como Ganga Zumba (1963), Quilombo (1984) e Chico Rei (1985), além de obras mais conhecidas do grande público como O Pagador de Promessas (1961), Zuzu Angel (2006) e Pitanga (2017).
Cultura como passaporte da cidadania
Pitanga nasceu no centro histórico de Salvador, no Pelourinho, filho de Maria da Natividade, a quem chama de baobá (árvore africana imponente e frondosa). “Nasci munido da raça e da história”, afirma, lembrando que mesmo tendo trabalhado desde os 12 anos e tendo uma vida complexa, a mãe lhe ensinou o amor. Foi batizado na Igreja Rosário dos Pretos, a única que permitiu o ingresso daquela família negra.
Antônio tinha quatro irmãos, mas foi o único a ir para um internato jesuíta. No começo, não entendia. Mas depois percebeu o valor daquele momento em que aprendeu várias profissões e a disciplina, já que antes era muito brigão.
Na adolescência, via as pessoas dançando e se arrumando para ir ao Clube Fantoches, onde negros não podiam entrar, mas que ele espiava da rua. Almejava aquela vida, aquela teatralidade. “Povo que grita, que dança, que chora. Isso é teatro”, afirma, lembrando que foi a “cultura que lhe deu o passaporte da cidadania” e que a “alegria que a cultura proporciona deu o mote da vida”.
“Sou inaugurador de amigos”, define-se, dizendo que dorme pouco porque gosta de estar com as pessoas. “Vou à feira, jogo futebol. Gosto de ver gente”, resume ele, que é casado com a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ).