Por Cinthia Gomes*
A Quarta-feira de Cinzas aqui em casa terminou em bate-boca por causa do resultado da apuração das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro. Mamãe, que é mangueirense, ficou inconformada com a vitória da Beija-Flor, escola pela qual papai torce. Não sei se vocês sabem, mas a apuração das notas dos desfiles é um assunto muito sério no Rio de Janeiro. Dá confusão, mesmo em família.
Após a salutar discussão – na qual eu obviamente não me meti – papai veio conversar comigo. “Você sabe por que eu gosto da Beija-Flor?”, ele perguntou. “Não”, respondi e já sentei num banquinho, pois sabia que lá vinha história. “Antes eu gostava da Portela. Ainda gosto, como gosto de outras escolas. Mas quando a Beija-Flor ganhou o Carnaval pela primeira vez, eu vi gente da Baixada toda ir comemorar o título. Isso foi nos anos 70. Não foi só o pessoal de Nilópolis. Foi gente de Caxias, de São João, de Belford Roxo, todo mundo foi pra lá comemorar. E por que isso? Porque foi a primeira vez que uma escola da Baixada ganhava alguma coisa. Antes, tudo era só o Rio de Janeiro. Eu já fui impedido de me candidatar em vaga de emprego por morar na Baixada. Tinha muita discriminação. Então aquela vitória foi como um grito, foi como se a gente tivesse dizendo assim: nós existimos, nós estamos aqui!”. Quase 50 anos depois do primeiro campeonato, a Beija-Flor de Nilópolis comemora o 15o título de sua história.

Quadra da Beija-Flor fica lotada para a comemoração em 2025
Papai também lembrou que Laíla, o carnavalesco homenageado esse ano pela escola, trabalhou com o gênio Joãozinho Trinta, e juntos conquistaram, de cara, um tricampeonato (nos anos de 1976, 1977 e 1978), além de terem sido responsáveis pelo polêmico e até hoje icônico enredo “Ratos e Urubus, larguem minha fantasia”, de 1989. E lembrou que o intérprete Neguinho da Beija-Flor, que este ano se aposenta com vitória, também estreou com vitória, em 1976, naquele primeiro campeonato da agremiação – motivo de orgulho para todos os moradores da Baixada Fluminense.
Em segundo lugar na disputa deste ano ficou a Grande Rio, também da Baixada. Apesar de ser mangueirense, como minha mãe, tenho carinho pela escola de Duque de Caxias pois meus tios Oscar, Beto e Niltinho, irmãos de papai, estiveram entre os fundadores, nos anos 1980. Lembro que o quarto do meu tio Beto parecia um museu do Carnaval. Ele pendurava as fantasias na parede depois dos desfiles, tinha retalhos de tecidos, adereços, brilho… Era incrível, uma das mais bonitas das minhas memórias infantis. Tio Oscar foi chefe de ala, tio Beto e tia Libânia costuravam as fantasias. Antes da Beija-Flor e da Grande Rio, já haviam outras escolas (algumas ainda existem), como a Unidos da Ponte, Cartolinhas de Caxias e União do Centenário, mas que não conseguiram a projeção que a Campeã e a Vice deste ano, ambas da Baixada, conseguiram. Claro que existem fatores para a competitividade de uma escola de samba, como financiamentos e adesão a um modelo comercial que, ao mesmo tempo que profissionaliza e gera renda, também transforma a tradição em mercadoria e retira os protagonistas – o povo, especialmente o povo preto – da centralidade das decisões e do dinheiro que essa indústria movimenta. Mas, ainda assim, o que as escolas de samba fazem – simbólica e materialmente – por suas comunidades e o amor que os integrantes sentem por elas não estão à venda, permanecem fora e além de qualquer mercado-lógica.
*Crédito da foto Destacada: Anibal Philot/Agência O Globo