Saída do Ilê Aiyê é festa cultural, política e de religiosidade

Bloco afro desfila no sábado de carnaval pelas ruas do bairro Curuzu, em Salvador

Texto: Guilherme Soares Dias/Fotos: Heitor Salatiel

Uma festa preta, multicultural e de resistência. O sábado de carnaval em Salvador quando o bloco afro Ilê Aiyê sai do terreiro Ilê Axé Jitolu e sobe a ladeira do Curuzu, no bairro homônimo, é um momento único e bastante esperado pela comunidade. A celebração começa com a coroação da deusa do ébano, que ganha o turbante da estilista Dete Lima.

Jéssica Nascimento, 19 anos, venceu o concurso da beleza negra e carrega o título neste ano. “O coração bate forte. É um momento de celebração da nossa raça e autoafirmação da nossa identidade. Represento todas as mulheres negras nesse momento. Apesar do racismo e discriminação eu como deusa do ébano estou aqui mostrando que podemos vencer e estar em lugar de poder e protagonismo”, diz ela.

A saída do bloco também é palco político. O governador da Bahia, Rui Costa (PT), que deve tentar a reeleição, conversou com a imprensa e pousou atrás da deusa do Ébano e do fundador do bloco Antônio Carlos dos Santos, conhecido como vovô do Ilê. No ano passado o prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), foi vaiado na festa e esse ano não apareceu.

Na frente do terreiro, uma multidão se espreme para ver uma cerimônia que ocorre desde 1975 no bairro. Do candomblé, a pipoca jogada no público pelas baianas emudece todos. As pombas brancas são soltas e um canto para Oxalá é entoado. A festa está aberta. O bumbo estremece a ladeira e a banda toca. O público puxa as conhecidas músicas do bloco e segue rua acima até encontrar um mini trio que leva cantores e dançarinos. O caminhão faz manobras entre fios e carros da ladeira do Curuzu enquanto o público se espreme, mas segue o cortejo.

O Ilê nasceu da resistência em um momento em que só brancos podiam desfilar em outros blocos da cidade. Até hoje brancos não podem fazer parte do Ilê. “A ideia não é criar um apartheid negro e sim mostrar a nossa força e se libertar do ranço da escravidão mental. O espírito aqui não é social, é racial. E a saída do bloco é uma referência que atrai milhares de pessoas todos os anos. É um espetáculo, uma confraternização e uma troca de energias”, define Vovô do Ilê.

Vamos registrando tudo o que vemos pelo caminho para tentar transmitir o que é essa festa. Mas lentes e olhos nos traem. É o corpo que sente. É o coração que vibra, a alma que fica engrandecida. As músicas pautam o orgulho de ser negro. “Coisa de negro”, diz o verso de uma. “Sai da senzala”, canta a outra. E emenda: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem. Tu tomavas banho de piche, branco e, ficava preto também”

Reis e rainhas

A alegria no rosto está presente por onde você olha. Há um balé da multidão que vai coreografando a pequenos passos a batida do bumbo. O mais belo dos belos nessa noite é cada um que veio participar da festa e colocar sua negritude na rua, com orgulho, paixão e vontade de ser, pertencer, representar e estar nesse lugar de celebração do povo preto. Homens, mulheres, crianças e idosos. Todo mundo quer ver o Ilê Aiyê passar por ali. É história, é cultura, é resistência, é militância. São roupas, músicas, danças, cores e sentimentos que tornam todos um só. É um povo negro que se faz e se sente Ilê (casa, na língua iorubá).

Uma fila de adolescentes canta “é só amor” enquanto bate palmas e sobe a ladeira. É o clima da celebração. Nenhuma confusão é registrada e a Polícia Militar da Bahia que costuma abrir caminho com o cassetete para passar entre o público no carnaval não usa o instrumento durante essa noite.

Alguns atores globais como Nanda Costa, Geovana Ewback, Maurício Destri, Bruno Gagliasso e a consultora do programa Encontro com Fátima Bernardes Maíra Azevedo (a Tia Má) engrossam o público da noite. Das casas, portas abertas e sacadas animadas. É o dia mais esperado do ano na comunidade. A cuidadora de idosos Dandara de Deus dos Santos, 28 anos (foto abaixo), está com a família reunida em casa para ver o bloco passar. “Todo ano esperamos. É uma emoção. Nos sentimos parte disso, nos representa de uma forma que não dá nem para explicar”, diz ela, ao lado de primos, tios e amigos.

A pensionista Lucia Barbosa, 78 anos, dorme todos os dias entre 20h e 21h, mas no sábado de carnaval não sai da Rua do Curuzu, enquanto o bloco não passa. Ela canta e dança enquanto conta que foi uma das fundadoras do bairro. “Nasci e me criei aqui. Tenho cinco filhos, dez netos e quatro bisnetos e todo mundo mora no bairro”. São 00h35 e quando o Ilê aponta na frente da casa dela pergunto qual é a sensação. Emocionada, ela só consegue repetir “beleza pura”, enquanto se mexe e acompanha a banda com os olhos.

Uma mulher com turbante dourado e roupas de estilo africano de cor vermelha chama a atenção no meio das pessoas. “Quantas vezes por ano você se veste assim?”, questiono. “Só hoje, segunda e terça”, responde ela. São os dias que o Ilê sai. Realmente como dizia uma antiga matéria da Revista Realidade sobre a folia, o Brasil é o único lugar do mundo onde reis e rainhas se disfarçam de pessoas comuns para voltar a assumir suas majestades durante o carnaval.

Olodum: mais do que bloco de carnaval, grupo é entidade em Salvador

 

 

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Redação

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