Hoje, 21 de Março, é o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. No Brasil, também se celebra o Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. A data internacional foi instituída em 1960, após o massacre de Shaperville, na África do Sul, em que a polícia local matou 69 manifestantes que protestavam contra as leis do apartheid – que segregava as pessoas negras em seu próprio país. Mas nem precisamos ir tão longe: esse mês mesmo, aqui no Brasil mesmo, tivemos casos que exemplificam a necessidade da data e da luta.
O episódio que ganhou maior notoriedade – não foi no Brasil, mas ocorreu com brasileiros – foram as ofensas racistas sofridas pelos jogadores Luighi e Figueiredo, numa partida contra o time uruguaio Cerro Porteño pela Libertadores Sub-20. Embora não seja normal nem aceitável, racismo no futebol é relativamente comum. O que não foi comum foi a reação de Luighi, que se indignou com a indiferença dos policiais em campo que nada fizeram, do árbitro que seguiu o jogo e do repórter que tentou ignorar o ocorrido e entrevistá-lo apenas sobre o placar, e demonstrou ao mundo que o racismo é crime e fere a nossa humanidade.
Dias depois, o presidente da Conmebol (nem vou me dar ao trabalho de mencionar o nome) foi entrevistado sobre a possibilidade de os times brasileiros se retirarem do torneio, em retaliação à falta de comprometimento no combate ao racismo. “Seria como o Tarzan sem a Chita”, foi a resposta do dirigente da instituição, autorizando o comportamento de torcedores tão racistas quanto ele.
Nesse caso, foi uma violência simbólica – nem por isso menos doída. Mas no país do futebol, a violência física, especialmente a violência policial, mata um jovem negro a cada 23 minutos – o que chamamos genocídio da juventude negra. E foi o que vimos (ou não vimos, pois foi muito menos noticiado) na noite da terça-feira de carnaval, em que a Polícia Militar do estado da Bahia promoveu a segunda maior chacina de Salvador desde 2022. Doze (oficialmente 12, mas já ouvi relatos de que teriam sido 14) jovens foram assassinados no bairro Fazenda Coutos, no subúrbio ferroviário. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, essa foi a centésima chacina na capital baiana – cidade brasileira com o maior percentual de população negra – apenas nos últimos três anos.
Mas o Brasil também é o país do Carnaval, não é mesmo? E eis que, na quarta-feira de cinzas, quando são apuradas as notas dos desfiles do Grupo Especial do carnaval carioca, uma jurada surpreendeu ao “esquecer” de atribuir notas a três escolas de samba no quesito samba-enredo e mais ainda: tirou 3 décimos na Unidos de Padre Miguel com a justificativa de “excesso de termos em iorubá”.

Bem, a primeira coisa a ser lembrada à nobre jurada é que o iorubá é uma língua estrangeira no Brasil tanto quanto o português. Sim. Embora seja a língua oficial, o português não é a língua nativa, ela foi trazida e imposta quando da invasão deste território que já era habitado pelos povos originários: línguas nativas brasileiras, portanto, são as diversas línguas indígenas. Além disso, sabemos – mas o preconceito linguístico às vezes nos faz esquecer – que nenhuma língua é “pura”. Os intercâmbios linguísticos sempre existiram e as línguas africanas – não somente o iorubá, mas especialmente o kikongo e o kimbundo, línguas de origem banto – muito influenciaram na constituição do português brasileiro, adicionando palavras, expressões e sotaques aos nossos falares.
O Carnaval – achei que não ia precisar lembrar, mas parece que o pessoal anda meio esquecido – é uma festa popular, que não se tornaria o maior evento do Brasil se não fosse a riqueza, a cultura, a história e a criatividade do povo preto. Na avenida, ao som da batucada do samba (parece que também precisa lembrar que veio da África), transportamos o público para outros mundos e contamos histórias que a história não conta. Como fez a Unidos de Padre Miguel, ao celebrar Iyá Nassô, sacerdotisa africana que fundou o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, ou a Casa Branca do Engenho Velho, na primeira metade do século 19, em Salvador, considerado o primeiro terreiro de Candomblé do Brasil. A língua traduz valores culturais, é o que suporta o peso de uma civilização, como definiu Fanon. Impossível contar essa e outras histórias sem trazer seus signos verbais.
E tudo isso aconteceu apenas na primeira quinzena do mês de março de 2025. O racismo ocorre todos os dias, em todas as esferas e de todas as formas. Por isso, a luta pela eliminação da discriminação racial não pode ser apenas uma data. Deve ser uma prática, um compromisso assumido por toda a sociedade: governos, instituições e empresas, por cada um e cada uma de nós.