Cantor fala sobre a carreira, os ritmos que toca, comunidade negra e nova geração de músicos
Texto: Guilherme Soares Dias/Fotos: Heitor Salatiel
A voz grave e rouca de Lazzo Matumbi é marcante por si só, mas é sempre acompanhada de palavras pensadas ou sonoriza canções que ele eterniza. Aos 62 anos, Lazzo entoa seu vozeirão cada vez mais forte. Ele sempre falou o que pensa, o que acredita e pagou os preços por isso. Mas o reconhecimento de que é a “voz da Bahia” veio cedo e esse título ele nunca perdeu. Pelo contrário, confirma-o quando ao invés de cantar, recita algumas músicas, como “14 de maio”, o que torna os versos ainda mais marcantes.
Antes de começar a cantar, Lazzo foi percursionista em uma banda de samba. “Percebi a discriminação com quem tocava. Então, comecei a só cantar. Entendi que havia preconceito com cantor de samba e pensei: vão ter que me engolir cantando outra coisa. Entrei no pop e conheci o reggae”, conta. Lazzo integrou o bloco afro Ilê Aiyê entre 1978 e 1980. “Naquela época, a gente conseguiu fazer uma revolução no carnaval, já que os blocos não tinham espaço para os negros adentrarem”, afirma. Em 1981, ele faz seu primeiro show solo e em 1983 foi para São Paulo participar de uma feira de cultura e por lá ficou trabalhando como cantor.
A “revolução” feita no carnaval de Salvador fez com que Lazzo se sentisse “poderoso”. O movimento de blocos afros se espalhou por Rio e São Paulo, onde ele participou das “Diretas já”. Quando voltou a Salvador teve a sensação de que a cidade tinha parado no tempo. “Cheguei em 1985 e estava aquela evolução do axé music, que era uma música com polêmica e que me entristece. Há 35 anos isso se reproduzindo como se fosse uma coisa normal”, afirma. Lazzo lembra que o nome axé é forte dentro da comunidade negra por conta da religiosidade e foi utilizado de forma deturpada. “No começo era muito pejorativo, quando as pessoas falavam em axé, diziam: ‘vamos tocar aquela música de axé, da negrada’”, afirma.
O cantor lembra, no entanto, que muitos artistas construídos naquele momento não vingaram. “É como se você desse dez passos para frente e outros 40 para trás. Isso me frustra até hoje. Porque o meu sonho é que a minha gente conseguisse se organizar para que a gente tivesse um posicionamento dentro da sociedade mais forte não só a aparência do que nós somos. Quando você vai em uma festa do Olodum que você vê um monte de gente no Pelourinho dá a impressão de que tá tudo ótimo, mas não está”, pontua.
Entre as questões que evoluíram do momento que começou a cantar para os dias atuais, estão, segundo Lazzo, as cotas raciais e a consciência da beleza estética. “A gente ainda não conseguiu se organizar no sentido de se fortalecer para o enfrentamento do racismo, porque temos vários quilombos e esses quilombos precisam se aquilombar mais, porque só assim a gente fortalece”, considera.
Entre os cantores com os quais se juntou para ter mais força está Luiz Melodia, que gerou a música “Destino Coração” para seu primeiro disco. “De lá pra cá a gente sempre teve uma amizade e eu sempre gostei muito dele, um negão que surgiu do Morro de São Carlos com uma poesia diferenciada”, afirma. Lazzo conta que toda vez que Melodia fazia um show o convidava para tocar junto. Depois da morte do cantor carioca, o amigo baiano fez shows em sua homenagem. “Fiz uma releitura de tudo, de uma forma totalmente diferente e ficou bom pra caramba. Um show com 10 músicos no palco: quatro sopros, percussão, teclado, guitarra, bateria, baixo e dois vocais. O que mais me emocionou é quando eu lembro do teatro só com pessoas negras assistindo”, conta.
O sobrenome artístico do cantor: Matumbi, também tem ligação ancestral e foi colocado por David Santiago, produtor do primeiro disco. Antes, era conhecido como Lazinho Diamante Negro. Quando foi cantor do Ilê Aiyê passou a ser chamado de Lazinho do Ilê. “Ele me deu esse sobrenome. Perguntei o que era Matumbi e ele falou: pedra sagrada da África e eu aceitei”. Contudo, no trabalho seguinte, tirou o sobrenome e deixou apenas “Lazzo”, mas um amigo fez uma pesquisa e comprovou que “Matumbi” era uma pedra sagrada da Nigéria. “Mas também descobri que é nome de realezas do Congo. Então, mantive o nome”.
Ritmo. Lazzo diz que não consegue definir o ritmo que toca, mas afirma que faz uma fusão de ritmos do samba, samba de roda, maracatu, capoeira e ijexá. “Tenho influências que permeiam desde Wilson Simonal a Gilberto Gil. Quando o reggae surgiu comecei a entender que esse som se espalhava no mundo”, afirma. O cantor fala da forte ligação entre Salvador e Jamaica, já que a cena do reggae é bastante forte na capital baiana. “O reggae na Bahia tem uma percepção muito inteligente de ser mais político”, afirma.
Lazzo lembra que foi em uma exposição sobre o tema em São Paulo e questionou por que ela não desembarcou em Salvador. “Não é à toa porque quem domina a cultura da Bahia ainda é uma pequena elite. Nós ainda não acordamos para entender que quem tem que dominar a cultura somos nós. Independente das condições financeiras, se você tem uma consciência do que você faz, do que você atinge, aos poucos consegue chegar lá”, acredita. Nesse sentido, ele diz que a comunidade negra precisa dialogar mais entre si e a considera “muito dispersa” atualmente. “Tenho um amigo branco que diz ter o maior respeito por eu não discutir racismo de forma grosseira. Eu digo que não estou aqui para ficar falando a minha dor. Estou aqui para perceber a minha dor e dizer: ‘vamos nos conduzir de forma firme e forte, porque conseguir a gente consegue’”.
Ele diz que admira a nova geração de músicos nascidos na Bahia, como BaianaSystem, Luedji Luna e Larissa Luz. “É pensante e, por isso, fico feliz. Só tem que ter cuidado, por eles não terem muita experiência e pensar que é fácil. Tem que agir como guerrilheiro, isso é uma guerra. Você não pode dar um pau aqui e depois querer passar achando que ninguém está te olhando”, afirma, dizendo que gosta do som e das ideias que Xênia França e Russo Passapusso propagam.
Quando questionado se tem medo de perder shows ou patrocínios por conta dos posicionamentos políticos, Lazzo diz que não se importa. “É minha dignidade e isso eu não vendo, não troco. Ela foi construída por meio dos meus pais”, afirma. Ele conta que na década de 80 uma produtora criticou-o por falar muito das questões do negro e pediu que falasse mais sobre amor. “Eu respondi: ‘para mim, falar da minha gente é a minha forma de falar de amor. Eu falo com a pureza da alma, do fundo do meu coração”, afirma.
O cantor nasceu no bairro do Garibaldi, em Salvador, e, apesar de não ser do candomblé, toda vez que sobe ao palco “entrega a ancestralidade que me acompanha por me manter vivo, dialogando com os novos”. Lázaro Jerônimo Ferreira, nome de batismo do cantor, diz que entre suas músicas gosta muito de “Lamento” por ser questionadora. “A música pergunta: ‘até quanto tempo vamos esperar uma longa avenida livre de todos os preconceitos’”. Eu sempre digo: “‘não espere que o opressor faça nada, quem tem que fazer somos nós por nós mesmos’’.
Lazzo, no entanto, admite um certo incômodo. No carnaval de 2019 iria tocar dois dias, uma no Pelourinho e outra no bairro da Liberdade. Na véspera, descobriu que não faria mais o segundo show. “Eu não estava na grade. A gente não tem força. Para quem eu vou gritar? Você não grita, você toma a sua porrada, endurece o ombro e no outro dia seu corpo está firme e forte. Você vai pra guerra o tempo todo”.
Em 2020, o cantor luta para lançar um novo disco intitulado “Minha Paz”, previsto para o segundo semestre.
“Será que deu pra entender a mensagem?
Se ligue no Ilê Aiyê
Se ligue no Ilê Aiyê
Agora que você me vê
Repare como é belo
Êh, nosso povo lindo
Repare que é o maior prazer
Bom pra mim, bom pra você
Estou de olho aberto
Olha moço, fique esperto
Que eu não sou menino”
(Trecho de 14 de Maio, música de Lazzo Matumbi e Jorge Portugal)
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