Por Dai Sombra
Quando nos vem à mente a palavra identidade, automaticamente assimilamos com aquilo que nos reconhece como indivíduo próprio, nossa identificação como pessoa, ser singular nesse planeta. Quando cheguei a Espanha, em abril de 2001, senti a perda dessa identidade. Enquanto no Brasil eu me via com nome, sobrenome e autenticidade, aos poucos percebi que eu era a estrangeira, a sul-americana, a negra.
A sensação desse apagamento identitário para uma adolescente de 17 anos, foi como sair do seu território e se lançar ao vazio não gravitacional. Vinda da periferia do Rio de Janeiro, de uma família ligada à cultura da capoeira, do samba e das religiões de matrizes africanas, sempre estive muito ligada às minhas raízes e seu valor histórico no mundo.
Foi a cultura afrobrasileira que me trouxe a Europa e foi ela quem sustentou e sustenta minha permanência em relação ao bem-estar. Aceitei o jogo, e como boa capoerista, soube levantar da rasteira que o abismo da imigração me golpeou.
Entre os anos de 2014 e 2017, regressei ao Brasil, e retomei esse resgate da minha identidade individual, social, coletiva e cultural. Com a experiência de quase 20 anos entre Espanha e Brasil, reconhecendo-me como ativista antirracista, pesquisadora decolonial sobre africanidades, livreira e produtora sócio-cultural, decidi aquilombarme na Espanha e daí nasce o grupo de estudo: Afrobrasilidade.
Barcelona é uma cidade cheia de brasilidade. Capoeira, Frevo, Forró, Escolas de Samba, Coco, Ciranda e ativismo. Sempre muito consciente de que a experiência de um corpo preto em sociedade difere muito de um corpo sem esse perfil étnico, muitas vezes, nesses encontros com nossa gente, entre conversas sobre nossas experiências, percebi que uma reflexão e contextualização social partindo de nossa origem seria muito mais construtiva para nossa identidade cultural negra em Diáspora.
O grupo de estudos Afrobrasilidade foi criado em 2020 para formalizar esse espaço de reflexão e para nos situar no centro de análises, como agentes direto e transformadores da nossa comunidade afro-brasileira fora do Brasil.
Nossos encontros ocorrem por meio de um grupo de WhatsApp, reuniões online e presenciais, onde selecionamos uma temática de assunto a ser desenvolvida desde a perspectiva individual e logo a interação dessas opiniões.
A troca e aprendizado é desde uma filosofia Ubuntu onde nosso saber experimentado se mistura com os estudos de grandes estudiosos, acadêmicos e pensadores brasileiros e brasileiras, como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Abdias do Nascimento, etc, e com os personagens históricos como Aquatune, Dandara e Zumbi.
Movimentos sociais negros como MNU (Movimento Negro Unificado) FNB (Frente Negra Brasileira) IPN (Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos), etc, também são essenciais para nossa memória negra, autoestima e responsabilidade da continuidade afirmativa na nossa comunidade.
Reflexões e vivências
O Afrobrasilidade é um espaço de pensamento afro-brasileiro onde discutimos assuntos pertinentes à nossa história em um ambiente de confiança onde o foco somos nós, nossas reflexões e vivência desde o Brasil até nossa diáspora pessoal.
Também valoramos a diversidade afrodiasporica e dentro de nosso grupo de estudo temos integrantes originários do continente África, enriquecendo cada debate, assim como participantes desde o Brasil ou outras cidades da Espanha, como Madrid.
É preciso lembrar que identidade cultural é a soma das características de um povo oriundas da interação dessa sociedade e sua maneira de interagir com o mundo. Já a identidade social é a consciência de um indivíduo ou coletivo de convivência no âmbito social. Esse reconhecimento é um dos elementos importantes que caracteriza sua interação, inclusão ou exclusão em um sistema social.
Segundo um artigo do Portal Geledés: Identidade Negra e Racismo: “Valorizar a identidade negra e combater ações de discriminação e preconceito são o primeiro passo pra alcançar uma sociedade racialmente mais justa.” *
Como mulherisma africana, destaco a presença da nossa referência matrilinear, Dr. Glaucenira Maximino, advogada e contemporânea de Lélia, Abadías. Foi assistente jurídica no Departamento de Trabalho e Vivenda do Rio de Janeiro, assessorando o Secretário Carlos Alberto de Oliveira Caó, autor de Lei Caó, que pune o racismo como crime. Sua presença, ao largo dos seus importantes anos de militância, nos inspira.
A língua portuguesa, ou o “pretogues”* é o nosso meio de comunicação comum, porque reconhecemos que o idioma também é um meio de apropriação cultural. Nossos encontros de estudo têm o formato não misto, mas faz parte do projeto, alguns encontros presenciais de caráter misto para contemplar reflexões ligadas a relações intrarraciais, filhes afrodescendentes e pessoas não afros inseridas no mundo antirracistas com interesse em aprender com o meio.
Nossa base, em todos os encontros é baseado na afrocentricidade, seja na culinária, na música, nas conversas e, principalmente, na temática elegida para o encontro. Para fazer parte do grupo de estudo, é necessário ser uma pessoa que se considera afro-brasileira e que essa leitura étnico social faça parte da sua experiência de vida.
Nos encontros afrocentrados mistos, abrangemos essa interação baseada na troca social. O grupo não tem uma página oficial e a adesão pode ser feita por meio de uma mensagem privada à página Hija de la Diáspora, onde terá mais informações sobre o formato e agenda dos encontros e grupos de estudo.
Estamos abertos para afro-brasileires que venham a cidade de Barcelona e querem conhecer nosso projeto. Afrobrasilidade é uma reeleitura da história brasileira, da nossa cultura e nossas experiências como brasileiras e brasileiros mundo afora.
* Palavra atribuída por Lélia González para a fixação de um português brasileiro que se propõe a traçar a trajetória política e de (re)construção da consciência racial manifestada por meio da linguagem.
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