Por Laiana Horing Nantes**
O uniforme escolar lhe caía impecavelmente. Toda arrumada e a passos rápidos, Cândida dos Santos fazia seu caminho, diariamente, até o Colégio Estadual, onde cursava o 2º ano ginasial. Era 1952, e já havia se passado quase uma década, desde o dia em que a menina de 9 anos apareceu no Externato São José, perguntando como fazia para se matricular na escola.
“Eu sonhava em estudar. Um dia decidi ir até a escola que ficava perto da casa na qual eu morava com a minha mãe e ela trabalhava como doméstica. Chegando lá, eu perguntei quanto custava para estudar. A senhora Simpliciana Corrêa, diretora da escola, me disse que eram 20 mil Réis. Minha mãe, que ficou viúva quando eu tinha 3 anos, trabalhava para nos sustentar e ganhava apenas 50 mil Réis por mês. Não daria para pagar. Eu já estava saindo triste, quando dona Simpliciana me chamou e perguntou se eu queria ajudar na limpeza da escola em troca do valor da matrícula. Eu não cabia em mim de tanta alegria”.
Naqueles dias de 1952, a bela e determinada jovem negra, de 17 anos, queria ser médica. Ela ainda não imaginava que seu destino lhe reservava a nobre profissão do magistério, que ela aprenderia a amar, admirando e acolhendo os conselhos do professor Alcídio Pimentel – o educador físico que lhe apresentou uma de suas grandes paixões: o voleibol. No início da década de 1950, os mestres Simpliciana Correa e Alcídio Pimentel, que mudaram a vida de Cândida promovendo seu encontro com a educação, se juntaram com os demais educadores de Campo Grande, para criar uma entidade que, mais uma vez, faria parte da vida dessa jovem estudante, no seu futuro como professora. No dia 18 de maio de 1952, enquanto Cândida estudava e treinava vôlei no Colégio Estadual, os dois professores estavam na Associação de Criadores do Sul de Mato Grosso, onde acontecia a Assembleia Geral de criação e eleição da primeira diretoria da ACP – Associação Campo-grandense de Professores.
Os estudos na fase do ginásio já estavam chegando ao fim e nos treinamentos do vitorioso time de vôlei feminino de Campo Grande, Cândida compartilhava com o treinador Alcídio Pimentel, seu sonho de estudar medicina.
“Eu sempre fui muito estudiosa. Tinha certeza de que queria estudar, ter uma profissão. A medicina me encantava, mas não existia o curso em Campo Grande. Eu teria que ir para o Rio de Janeiro e minha condição financeira não permitia essa mudança. Foi nessa época, que o professor Pimentel me disse: Por que você não faz o curso normal? É gratuito e tem aqui em Campo Grande. Eu admirava muito meus professores e aceitei a ideia. Então, fui ser normalista. Assim comecei minha carreira como professora”.
Uma carreira de muito sucesso. A soma dos talentos de Cândida fez dela a mais famosa professora de educação física de Campo Grande. Hoje, aos 82 anos*, ela é reconhecida entre os colegas, ex-alunos e atletas como “A grande Cândida”. Depois de concluir o curso normal, em 1956, a pioneira do voleibol e atletismo campo-grandenses iniciou sua jornada como professora. Ao longo da carreira, trabalhou em poucas escolas: Joaquim Murtinho, Visconde de Cairu, Barão do Rio Branco, Ginásio Batista, e Maria Constança de Barros Machado. Seu amor ao esporte e aquela sorte que acompanha os dedicados, a levaram para a educação física.
Em 1960, um grupo do Ministério da Educação veio formar professores em Campo Grande. Estava começando sua carreira como professora primária, e foi escalada pela secretaria de educação para auxiliar o grupo na parte administrativa. Depois do expediente, a jovem que amava vôlei, ficava jogando com os colegas na quadra da escola Maria Constança de Barros Machado. A habilidade de Cândida chamou a atenção dos educadores que a convidaram para ingressar no Curso de Educação Física Infantil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
“Quando recebi o convite, não pensei duas vezes. Passei o ano de 1961 morando e estudando no Rio de Janeiro, custeada por bolsa de estudos do Governo Federal. Foi um aprendizado incrível – eu tive aulas com a nadadora Maria Lenk. Fiz amigos, amadureci como pessoa e profissional”.
No retorno a Campo Grande, 10 anos depois daqueles dias de estudante ginasial, Cândida efetiva-se na Rede Estadual de Ensino, e seu caminho cruza com a ACP pela primeira vez. Ela filia-se em 1962 e logo concorre à diretoria da Associação Campo-grandense de Professores. A chapa presidida pela professora Maria Garcia vence a eleição e Cândida assume o cargo de Secretária Geral.
“Foi um ano de gestão. Nosso trabalho na ACP era bem tranquilo. Não tive nenhum problema ao longo desse período. A instituição ainda estava começando sua história. Tínhamos apenas uma década de fundação, e bem menos associados do que hoje. Mas, já possuíamos nossa sede, por exemplo, que sempre foi nesse endereço. Hoje eu vejo esse prédio enorme, bonito e me lembro de quando era só uma casinha. Fico feliz em ver a história que a ACP construiu”.
Na década de 1960, Cândida consolidou sua carreira como educadora e esportista. A falta de valorização salarial, que infelizmente sempre cercou o magistério, obrigava a ter uma longa jornada de trabalho para garantir seu sustento e de sua mãe. Trabalhava três turnos para ganhar seis mil cruzeiros, e pagar 4 mil no aluguel da casa que dividia com Dona Ana dos Santos, sua mãe. A vida dura e corrida de professora, a afastou da ACP. Ela sempre se manteve filiada, mas após concluir seu mandato como secretária geral, pouco frequentou as assembleias e ações promovidas pela Associação, a não ser os projetos educacionais que ofereciam cursos. Nesses, ela participava de quase todos, como boa estudiosa. Assim, trabalhando duro e estudando sempre, Cândida foi construindo sua vida. Essa dedicação despertava a admiração e solidariedade dos colegas. Numa época em que comprar a casa própria era um sonho quase inalcançável, ela realizou aos 30 anos, com a ajuda de um colega.
“O salário era muito baixo, mas eu trabalhava bastante, e tudo o que ganhava, entregava nas mãos de mamãe. Como eu trabalhava à noite, e não tinha luz na região onde eu morava, a mamãe ia me esperar na escola, de lanterna na mão. Caminhávamos juntas, até nossa casa, por umas 10 quadras. Naquela época (1965), o professor Nelson Pinheiro era meu diretor na escola Barão do Rio Branco. Conversando com ele, eu comentei que tinha economias e pensava em comprar uma casa. Ele ficou compadecido da nossa situação e nos ajudou. Como era a mamãe que administrava nossos rendimentos, eu nem sabia quanto de dinheiro tinha economizado. Quando eles conversaram, ele viu que tinha condição de comprar a casa em que morávamos e, como éramos duas mulheres sem experiência em negócios, ele fez toda a negociação para evitar que fôssemos enganadas. No dia 22 de dezembro de 1965, eu assinei a escritura da casa que moro até hoje”.
No trabalho, a professora que amava estudar fez da arbitrariedade, um desafio, e foi mais uma vez pioneira da educação. Sua formação concluída no Rio de Janeiro já lhe dava o direito a exercer a profissão, mas o governo do Estado do Mato Grosso, que havia criado há pouco tempo a Universidade Estadual do Mato Grosso, exigiu que os professores de Educação Física fizessem a faculdade do Centro de Educação Física e Desporto. Mesmo com alguns colegas dizendo que ela não era obrigada a fazer outro curso superior, Cândida prestou o exame, foi admitida e formou-se, em 1973, na primeira turma do curso de licenciatura em Educação Física da instituição que, hoje, transformou-se na UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Uma vida dedicada ao esporte e à educação
A dedicação de Cândida, fez dela uma dessas poucas unanimidades. O porte físico esguio, forte, a levou para o atletismo, onde praticou diversas modalidades, sendo sempre a atleta a ser batida nas competições. Integrante da primeira e mais vitoriosa equipe de vôlei de Campo Grande, ela e suas companheiras de time, lideradas pelo professor Alcídio Pimentel, transformaram-se em lendas do voleibol de Mato Grosso do Sul. O time jogou junto por 20 anos e foi campeão por nada menos do que 17 deles. Duas décadas disputando e vencendo campeonatos de todas as dimensões Brasil a fora. Um feito jamais igualado.
Cândida guarda todas as medalhas que ganhou em todas as competições de vôlei e atletismo. Ao mostrar e contar a história da cada uma delas, o brilho nos olhos encharcados, a emoção de estremece seu corpo, parecem projetar todas as lutas e glórias da mulher negra, gigante, que conheceu ao longo da vida o apagamento da sua história e sabe a importância que ser seu próprio memorial.
“O voleibol teve uma importância enorme na minha vida. O esporte e o magistério me trouxeram grandes realizações e alegrias. Eu fui muito feliz como professora e esportista. Sou muito agradecida a Deus por tudo o que aconteceu comigo”.
Essa linda carreira durou 35 anos. Cândida foi professora da Rede Estadual de ensino de 1956 a 1991, ao longo desse tempo, passou por instituições privadas e públicas, mas sempre teve suas aulas do cargo de professora efetiva na Escola Joaquim Murtinho. Hoje, aposentada há mais de 25 anos, ainda é lembrada com carinho e admiração por colegas e ex-alunos.
“A Cândida é uma lenda da educação física de Campo Grande. Era incrível vê-la competindo e treinando suas equipes. Sou um grande admirador do seu trabalho” – confirma o tesoureiro geral da ACP e professor de educação física, Waldemar Gomes de Carvalho Júnior.
“Eu ia assistir a Cândida jogar vôlei. Era sua fã. Todo mundo do esporte em Campo Grande, nas décadas de 1970, 1980 e até 1990 conhecia, admirava ou temia enfrentá-la” – lembra a vice-presidente da ACP, professora Zélia Aguiar.
A voz firme, a determinação, o espírito esportivo, e o gosto pela competição assustavam adversários de Cândida. Ela tinha fama de brava nos jogos escolares. Mas, o carinho e as palavras de respeito de ex-alunos mostram justamente o contrário. Em menos de 30 minutos, a conversa no salão principal da ACP é interrompida pelo menos três vezes, por ex-alunos, que hoje também são colegas de profissão. A cena se repetiu em todos os reencontros: sorrisos largos, abraços cheios de gratidão, e elogios recompensadores para aqueles que amam sua profissão.
“Ela foi a melhor! A melhor professora, a melhor treinadora! Demais!”
Depois das palavras do ex-aluno, um abraço carinhoso enche os olhos de Cândida. O homem já grisalho, parte sem nem mesmo dizer o nome, na correria do dia-a-dia em 2017. Todavia, aqueles minutos de reencontro levam ambos, professora e aluno, a algum lugar feliz no passado
No prédio que hoje Cândida julga moderno, esses reencontros casuais mexem com as memórias da professora. Ao lado da ex-aluna Ana Amélia Espíndola Neto de Alcântara, que hoje é também professora de educação física aposentada, a mestra revive momentos de sua vida e da história da ACP. As duas recordam o período em que a singela casa, comprada em 1965, pela professora Maria da Glória Sá Rosa, foi transformada na nova sede, ampla, espaçosa, um espaço mais adequado para o início dos anos 1980, quando a ACP já era um instituição forte, com muitos filiados e vanguarda na luta em defesa dos direitos dos profissionais da Educação Pública.
“Eu me lembro do dia da inauguração da nova sede. Como isso ficou bonito. A casa estava cheia” – revive Ana Amélia, olhando em volta, com um sorriso no olhar, que demonstra a satisfação em fazer parte dessa trajetória de 65 anos. Ao que Cândida, apenas responde com um leve sorriso: “Esse lugar tem história”.
“Eu vivi os dois lados do esporte e da educação com a Cândida. Fui treinada por ela e também sua adversária. Olha, não era fácil competir com essa mulher, hein! – Diverte-se Ana Amélia, emendando: Ela foi uma grande professora. Um pouco da minha carreira foi inspirada no exemplo dela”.
Desde 1956 quando iniciou a carreira até sua aposentadoria, Cândida viu sua vida ser construída em torno dos valores que recebeu de Dona Ana, e aplicou no ensino e prática de esportes: respeito às pessoas, humildade, dedicação, honestidade, e fé de que as coisas dão certo. Como numa dessas peças que a vida nos prega, girando sua roda e mudando nossos caminhos, o falecimento de sua mãe, a companheira de toda a vida, reaproximou Cândida da ACP.
“Minha mãe faleceu em 2002. Eu fiquei muito abalada. Triste. Senti-me sozinha. Nesse mesmo ano eu vendi meu Fusca que dirigi por 30 anos. Foi um período de transição forte, mudança mesmo. Nessa época, a professora Heloísa Helena Calzolaio, que era secretária dos aposentados, me visitou com um grupo do Projeto Viver Melhor, e eu passei a vir aos encontros do grupo aqui na ACP. Naquele momento, foi o que me trouxe de volta à vida ativa. Eu já estava aposentada, não praticava mais esporte como ao longo da minha carreira, mamãe tinha partido… Frequentar as oficinas de artesanato mudou completamente minha rotina, hoje não fico sem vir aqui uma semana sequer. Reencontrei a ACP, depois de 40 anos”.
Totalmente integrada ao grupo de participantes do Projeto Viver Melhor, além de sua linda história na educação e no esporte, hoje Cândida também é reconhecida por outros talentos. O esmero que sempre empregou em tudo o que faz, ela hoje aplica na confecção de peças artesanais.
“Aprendi todas as técnicas com a professora Cristina, aqui na ACP”.
Assim como os feitos de Cândida, que talvez hoje não sejam conhecidos de todos, mas que, no passado foram determinantes para o desenvolvimento da educação e do esporte em nossa cidade, toda a história da ACP, ao longo desses 65 anos, não pode ser apagada. Precisa ser registrada e lembrada. Valorizar os feitos de cada educador e educadora, de cada filiado, significa reconhecer o valor do trabalho e da união. É também ressignificar a história oficial, que insiste em apagar os feitos gigantes de pessoas, de entidades que nascem das necessidades dos excluídos dos privilégios dos clãs das cidades. Duas histórias que retratam a fé na educação como ferramenta de transformação e crescimento. A luta de todos os educadores que construíram a ACP, e a vida de dedicação e empenho de Cândida, devem servir de energia para enfrentar as dificuldades que hoje estão impostas aos educadores.
“Não vou dizer que não tive dificuldades na vida. Tive muitas! Mas, eu nunca dei mais valor ao negativo. Ao contrário, sempre enfrentei as situações com naturalidade, buscando aceitar o que não podia mudar, e lutando para contornar o que era possível. Sempre foi assim. E eu também digo que encontrei a pessoa certa, na hora certa. Por isso, sou muito grata pela minha vida. Sou grata aos grandes mestres com os quais dividi momentos importantes, que me orientaram, me inspiraram, e me proporcionaram tantas alegrias. Sou uma apaixonada pela educação, e acredito que nossa profissão é fundamental para a sociedade. Lutemos por ela!” – ensina a grande mestra, professora Cândida dos Santos.
*Em maio de 2020, a professora Cândida completou 85 anos. Ela ainda mora na mesma casa que comprou em 1965. No lugar do fusca, atualmente ela dirige pelas ruas de Campo Grande, seu Fox prata.
**Publicada na revista Expressão ACP em 2017. Edição comemorativa aos 65 anos do Sindicato Campo-grandense dos Profissionais da Educação Pública – ACP
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As professoras digo professoras porque foram e são elas que contribuem para a evolução de um país em todos os sentidos mas não são reconhecidas o quanto merecem pois todos que graças a elas seguiram em frente e conquistaram um futuro melhor jamais fizeram alguma coisa por aquela que foi tão importante em sua vida.
Que linda história. Cândida foi minha professora também. Aprendi com ela a valorizar todos os momentos da vida, bons ou adversos. Ela dizia que é assim que se chega a um objetivo. Minha homenagem a essa valor a professara!
A narrativa sobre a vida da professora Cândida, nos remete ao gostoso tempo da infância e adolescência, fui seu aluno quando criança no Joaquim Murtinho, posteriormente no CEC, acompanhei sua trajetória como atleta e principalmente como professora. Deixo minhas homenagens a essa lutadora, por que a conheço e entendo que merecia muitas outras homenagens por tudo que contribuiu na formação de várias gerações!
Jean Saliba