Festa da Irmandade da Boa Morte, FLICA, Festa D’Ajuda, São João. O município de Cachoeira tem grande importância no calendário cultural do Estado da Bahia. E é no cenário dessa terra festiva que se desenrola a narrativa de ‘Na Contramão do Afeto: Histórias e Trajetórias Afetivas de Mulheres Negras’ (Editora Pinaúna, 2021), livro escrito pela jornalista Luana Souza, no qual ela analisa os entrelaços do racismo e machismo na vida de mulheres nascidas na terra banhada pelo Rio Paraguaçu.
E como um rio tem lá os seus encantos, a obra já fisga o leitor pela capa ilustrada por Mayara Ferrão: cinco mulheres negras representadas como sereias, usando contas e com os seios à mostra. O desnudamento do enredo começa por aí, pois além de entrevistar quatro mulheres, a autora usa sua narrativa pessoal para analisar a interseccionalidade de marcadores sociais no bojo dos afetos das mulheres negras, e deixa nítido que não há neutralidade no material, produzido originalmente como produto experimental de seu TCC do curso de Jornalismo.
O posicionamento por um viés também é apontado na escolha dos nomes fictícios das entrevistadas, associados à divindades do candomblé Congo-Angola, religião e “filosofia de vida”, como a própria Luana declara e enfatiza. E assim somos apresentados à Matamba, senhora dos ventos; Kaitumba, senhora das águas do mar; Dandalunda, senhora da fertilidade e das águas doces; e Zumbaranda, a mais velha e detentora da sabedoria ancestral. Mulheres de idades, circunstâncias e saberes diferentes, trazendo marcas tão similares.
Nessas conversas são relatadas histórias de agressões físicas, abandono parental, preterimento, reproduções de auto-ódio dentro do próprio seio familiar, abusos de várias ordens. E também há espaço para respiros, como a redescoberta do amor aos 50 anos usando aplicativos de paquera, a solidão da pessoa idosa em contraste com a liberdade de usufruir a vida sem dar satisfações, e o fortalecimento pessoal por meio da afirmação identitária. Mulheres que vivem as dores e as delícias de serem quem são.
E Luana é uma delas, ou melhor: um pedaço de cada história, título do capítulo que narra as experiências de uma das jornalistas e apresentadoras mais conhecidas do telejornalismo baiano contemporâneo. A mulher empoderada de hoje, um dia recusou os seus cabelos crespos em nome da ditadura de padrões de beleza quando adolescente, uma das artimanhas racistas que perpassam pelas vidas de pessoas negras. Episódios de reprodução de racismo da família, solidão, agressões e até depressão, foram vivenciados pela escritora.
“Estamos na contramão do afeto quando não temos direito à escolha e quando não somos as escolhidas; quando somos atingidas pelas depressão, pela solidão. Quando não somos vistas e entendidas por todos os outros. Quando nos matam”, Luana Souza, página 115″.
Se o livro é rico por retratar mulheres com histórias de vida que, muito provavelmente, assemelham-se às de tantas outras (nossas mães, parentes, amigas), ele ganha um status maior pela voz da própria autora se fazer presente. Luana opina que “pode parecer narcisismo me colocar como personagem do meu próprio livro”. Discordo. Ao desnudar-se de forma tão verdadeira, ela passa a inspirar leitoras (e também leitores) com sua trajetória que tem dor, mas também muita vitória. Trocaria narcisismo por coragem.
‘Na Contramão do Afeto’ é um daqueles livros que você pode ler em um dia, mas sempre vai querer reler um parágrafo, pois há referências relevantes para os estudos de interseccionalidade. Mesmo fruto de uma pesquisa acadêmica, não possui linguagem academicista. É potente como a energia de Cachoeira, e é fluido como as águas do Paraguaçu. Banhe-se!
‘Na Contramão do Afeto: Histórias e Trajetórias Afetivas de Mulheres Negras’
Luana Souza
Editora Pinaúna, 2021
120 páginas
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