África-Liberdade e a Jornada do Patrimônio ‘Negro’

Evento da Prefeitura de São Paulo destaca roteiros que contam histórias e culturas negras e percorrem bairro conhecido como de origem japonesa; novas placas começam a ser instaladas

Guilherme Soares Dias

Em seus 465 anos São Paulo vai acumulando várias camadas de uma cidade que é reconstruída dia a dia e vai apagando os vestígios das memórias mais antigas. O bairro da Liberdade é um dos exemplos de como o capital financeiro ajudou a recontar a história de um local que foi moradia dos escravizados livres dos séculos 18 e 19, que habitavam aquela que foi a primeira periferia da vila que ia enriquecendo com o dinheiro do café.  O nome do bairro também é herança de um homem negro: Francisco José Chagas. Ele, no entanto, não tem um busto ou placas na praça, que em junho de 2018 ganhou o nome de Japão-Liberdade.

A história única do bairro contada até então era de uma migração japonesa intensa que faz com que a cidade tenha a maior colônia fora do Japão. No último fim de semana (17 e 18), os festivais de cultura japonesa deram lugar a vários grupos contando a história mais antiga do bairro, que remete à época que ele era habitado pelos africanos livres. A Jornada do Patrimônio, evento da Prefeitura de São Paulo, levou centenas de pessoas em roteiros como a “As memórias em disputa: negros e japoneses na Liberdade”, “Práticas e memória negra no Bairro da Liberdade”, “Vivências Negras na Metrópole”.

Dos quase 400 roteiros do evento, cem eram no centro e pelo menos 15 contavam especificamente a história dos negros na cidade. A maior parte passando pela Liberdade, como a Caminhada São Paulo Negra, conduzida por esse repórter, que também é realizada mensalmente por meio da Black Bird Viagem. O evento foi, portanto, um marco na mudança da narrativa da história do bairro que ganhou adornos orientais na década de 1970 até ter o nome da estação e da praça alterados em 2018. O detalhe é que desde 2010 a migração mais crescente no local é de coreanos e chineses, que têm dominado o comércio da região.

Placas. Além das histórias contadas por coletivos, empresas e grupos de universidades, o bairro ganhou as primeiras sinalizações alusivas a essa memória apagada. O Pelourinho, poste de madeira em que os escravizados eram torturados em praça pública e que era uma das marcas dos centros administrativos, a cidades dos séculos 18 e 19, ganhou uma placa contando sua história onde ficava, na Praça Sete de Setembro, ao lado do Fórum Joao Mendes.

Também foram sinalizados o Berço do Hip-Hop, no Metrô São Bento, o Chafariz da Misericórdia, no Largo da Misericórdia, construído por Joaquim Pinto de Oliveira Tebas, um escravizado que foi um dos arquitetos mais importantes do século 18 e conseguiu comprar sua alforria com seu trabalho, além da primeira Igreja do Rosário dos Homens Pretos, na Praça Antônio Prado, 48. Ao todo, foram 25 novas placas de sinalização, que devem chegar a 53 até o fim do ano.

Essa foi a maior edição da Jornada do Patrimônio, criada em 2015 na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT). Em 2019, foram cerca de mil atividades que levaram aproximadamente 200 mil pessoas para as ruas, centros de cultura e museus em 500 pontos diferentes da cidade. “Fizemos um edital mais participativo. Incentivamos as casas de cultura que também realizaram ativações em seus territórios para que os moradores das regiões periféricas participassem da jornada. Além da Liberdade, tivemos visitas guiadas a terreiros na Zona Norte, exploração do Museu Afro Brasil, no Parque do Ibirapuera, e atividades no Centro de Culturas Negras do Jabaquara, além de tour fotográfico em Guaianazes, um território ocupado predominantemente pela população negra”, destaca o coordenador da Jornada do Patrimônio 2019, Higor Advenssude.

Ele ressalta que o grande cortejo da memória paulistana, realizado no centro, também retratou a pluralidade da história da cidade. O cortejo teve participação do bloco afro Ilu Inã, da bateria da escola de samba Vai Vai, além da presença do ator Aílton Graça, que interpretou o arquiteto Tebas e de grupos de povos indígenas. Já o jornalista e escritor Abílio Ferreira, autor do livro “Tebas: um negro arquiteto na São Paulo escravocrata”, que conduziu um roteiro sobre o personagem durante a Jornada, lembra que sentiu falta de outros protagonistas negros no cortejo. “O Geraldo Filme deveria ter sido retratado. Além disso, não tinha nenhuma mulher negra sendo destacada”, afirma.

Abílio também tem uma visão crítica em relação a Jornada. Apesar do aumento das atividades, ele destaca a ausência do nome dos proponentes de cada atividade no site do evento e nos 400 mil livretos distribuídos. “É preciso dar visibilidade para essas pessoas e coletivos que conduzem os roteiros”, destaca. O escritor é um dos ativistas do movimento negro que lutam para que a obra paralisada de uma galeria comercial, na Rua Galvão Bueno, onde foram encontradas ossadas em setembro de 2018, seja transformada em um memorial da história dos negros no bairro. Ali funcionou até 1858 o Cemitério dos Aflitos, onde as pessoas negras eram enterradas. Por enquanto, o local junto com a Frente Negra Brasileira, ambos na Liberdade, devem ganhar placas contando suas histórias até o fim do ano.

História da Liberdade. Francisco José Chagas, o Chaguinhas, era um soldado negro condenado à morte por ter liderado uma revolta pelo não-recebimento de salários em 1821. Ele seria morto no Largo da Forca, que fica hoje onde é a Praça Liberdade e seu metrô de mesmo nome. Mas quando Chaguinhas foi ser enforcado, a corda arrebentou. A multidão que assistia começou a gritar “liberdade”. A mobilização foi tanta que o local passou a ser conhecido assim, apesar dele não ter sido poupado da pena de morte. As pessoas começaram a acreditar que Chaguinhas era uma espécie de santo e começaram a acender velas no local.

Em 1853, surgiu ali a Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados. O corpo foi levado para a Capela dos Aflitos, que pertencia ao cemitério de mesmo nome. Numa das portas de madeira internas da capela, que dá acesso ao local onde está o corpo de Chaguinhas, fiéis depositam papéis com pedidos de milagre para ele. Há centenas deles. Num quadro, ele é retratado com a pele negra, mais clara, e com olhos azuis, um embranquecimento que a história já viu acontecer com a figura máxima do catolicismo.

Os japoneses só chegaram por ali a partir de 1900, num momento pós-abolição, em que os negros começavam a ser expulsos para bairros mais longínquos. Isso não impediu a Casa de Portugal, na Avenida Liberdade, de abrigar a Frente Negra Brasileira, nos anos 30, e de ser palco de várias apresentações culturais ligadas à cultura negra. Com os coletivos e agora com as placas, essas histórias vão sendo recontadas e vão revelando a primeira identidade desse local: a de África-Liberdade.

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Redação

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