Texto: Guilherme Soares Dias/Fotos: Heitor Salatiel
“A noite mais esperada e estrelada é da beleza negra. Vai eleger a Deusa do Ébano, uma negra forte cheia de riqueza que vai reinar o ano inteiro representando a raça negra”. A música “Negras Perfumadas” do Ilê Aiyê resume bem o que a noite da beleza negra representa. É a escolha da rainha do carnaval do bloco afro mais antigo do Brasil, criado em 1974 para reunir as pessoas negras que eram até então rejeitadas nos outros blocos. A valorização da beleza negra não ocorre somente no palco. O público veste seus melhores panos étnicos, blacks, tranças e acessórios num verdadeiro baile de gala preto, digno de Wakanda.
Ao contrário dos tradicionais bailes que se tornam cada vez mais bregas, a noite da beleza negra se renova e se torna cada vez mais necessária. São 15 mulheres cientes da sua negritude, beleza e força prontas para mostrar danças afros. Cada uma vem com seu brilho, dourado, saia rodada, búzios e palha. Elas tentam ganhar os jurados. Não é a pouca idade, nem a magreza que importam, mas a que melhor representa a cultura negra.
No público, pessoas vestindo roupas de grifes pretas como Mônica Anjos, Isaac Silva, Goya Lopes, Negrif, Katuka, Dressdecoração, Xongani, Dendezeiro, entre outros. Mas nem só de beleza e grife vive o concurso. É um certame político. O vice-prefeito Bruno Reis (DEM), candidato à prefeitura de Salvador, era um dos jurados e foi vaiado pelo público, enquanto a cantora, apresentadora e militante do movimento pela moradia Preta Ferreira, que foi presa em 2019, foi ovacionada. O presidente do bloco, Antônio Carlos dos Santos, conhecido como Vovô do Ilê, clamou por uma prefeita negra, em seu discurso antes de entregar o prêmio para a vencedora. A jornalista e influenciadora digital Maíra Azevedo, a Tia Má, fez o mesmo em sua apresentação.
Vovô do Ilê lembrou ainda da necessidade de fazer o dinheiro circular entre as pessoas negras. “Aqui não é terra de sertanejo. Aqui é terra de negão”, fala, ressaltando a importância da valorização dos blocos afros. O Ilê que tradicionalmente desfilou três dias no carnaval, vai desfilar apenas dois em 2020 por falta de recursos. Mesmo assim, Vovô prometeu a climatização da Senzala do Barro Preto, sede do Ilê, para 2021, já que o calor fez que muita gente suasse.
A 41ª noite da beleza negra foi dirigido por Elísio Lopes Junior, figura conhecida em Salvador por dirigir diversos shows e hoje fazer parte do casting de diretores da Globo. Apesar da noite de ser de exaltação da beleza negra, uma apresentação longa com balé, música e texto falou sobre feminicídio. Afinal, beleza negra e violência contra as mulheres andam juntas num país que registra sete feminicídios por dia, sendo a maior parte negras.
As jornalistas Lise Oliveira, Luana Assiz e Vânia Dias falaram sobre as últimas notícias de racismo e a importância de defender a valorização dos negros na sociedade. A rapper Preta Rara foi a primeira a cantar. Também se apresentaram Nêssa, cantora pop que vem se destacando no cenário musical da cidade, junto com Yan Cloud; o ator Ícaro Silva veio de maiô e peruca loura interpretando Beyoncê. A noite terminou com o encontro entre Marcia Short, Patricia Gomes e Graça Onasilê, a primeira cantora de blocos afros. O Guia Negro não registra aqui a apresentação da cantora branca presente e lembra que ela poderia ter dado a espaço aos artistas que se apresentaram na mesma noite na Concha Negra: Luedji Luna, Afrocidade e Margareth Menezes.
Um dos destaques da noite foi a cantora Nara Couto, nascida no Curuzu, que cantou sucessos como e “Linda e preta”, que pergunta no final “me diz quem é seu orixá”, assim como acontece com as candidatas da deusa do ébano. A cantora ainda brincou que é confundida com Nara Costa e emendou um arrocha como os entoados pelo xará em sua carreira. Ela cantou ainda “Sou negão”, que diz resumir sua verdade. “Sou cria do Ilê. Eu também já quis ser deusa do ébano anos atrás. Hoje, consegui mostrar minha música, colocar minha voz e estou muito emocionada”, afirma.
Mas como não destacar os tambores do Ilê e Iracema Kiliane, uma das cantoras, que fazem da festa especial por si só. O espetáculo é apresentado pelo educador Sandro Telles, pelo ator Sulivan Bispo, que interpretou Arany Santana, uma das fundadoras do Ilê e hoje secretária de Cultura do Estado da Bahia e pela produtora Val Benvindo, que veio vestida de amarelo e estava mais segura no papel de mestre de cerimônias, que assumiu no ano passado.
Candidatas. “Negra poderosa do Ilê”, canta uma das canções enquanto uma candidata desliza pelo palco, com chuva de papéis picados e público embasbacado com a beleza da dança. A cada anúncio, o orixá da candidata é revelado junto com as saudações utilizadas no candomblé. No ano de xangô, várias candidatas eram de Iansã, que vinha acompanhada do “eparrei”. Um vídeo com uma frase sobre o concurso dito pelas concorrentes era apresentado antes de cada uma entrar.
Com tranças azuis e búzios, a atriz Núbia Ferreira, 19 anos, tira a saia rodada e parte da roupa levando o público ao delírio. Ali, ela garantiu um lugar no pódio, mas ficou apenas em terceiro. A segunda foi a cantora e bailarina Sabrina Santana, 31, que trouxe movimentos diferentes e um olhar imponente coroado por sua cabeça sem cabelos e adornada com búzios.
A vencedora foi a autônoma Gleiciele Teixeira, 22 anos, moradora do Curuzu, bairro em que fica a sede do Ilê, que diz ter sonhado com o título desde a infância. Vestida pelo estilista Siri Brasil, ela trazia um penteado para o alto e dançou ao som “Nega Fulô”. Ao ser escolhida deusa do ébano, recebeu um troféu e um manto. Ao sair do palco, chorou copiosamente. “É uma valorização da alto-estima da mulher negra, respeito, representatividade. Me sinto realizada”, resume. Daniele Nobre, a deusa do ébano de 2019, lembra que todas as eleitas continuam sendo deusas mesmo depois de passar o posto. “Eu me transformei como ser humano. Ser deusa do Ilê é uma ação política. E isso vai estar para sempre comigo”, afirma.
Outra figura importante do concurso é a figurinista Dete Lima que diz que a escolha da deusa do ébano representa a sua vida. “Esses anos elevando a auto estima da mulher negra, também eleva a minha. Há uma transformação que acontecesse na noite da beleza negra. Agradeço a mãe Hilda Santos e ao Ilê que me deram régua e compasso. É a noite mais esperada”, diz, lembrando que é precedida pelo “sábado mais desejado”, quando o Ilê Aiyê faz a saída do carnaval pelo Curuzu, partindo do Terreiro Ilê Axé Jitolu, criado por sua mãe biológica e mãe de santo, Hilda Santos. “É quando faço um turbante que é uma coroa, que representa o fortalecimento e a beleza da negra. É o encanto”, resume.
Tapete preto. Como todo bom baile de gala, a noite foi repleta de pessoas importantes do mundo negro. Passaram por lá a empresária e produtora de conteúdo Ana Paula Xongani, o estilista Renato Carneiro, a jornalista Monique Evelle, a jornalista Dríade Aguiar, o cantor Jamelão Neto, o professor Hélio Santos, o DJ Branco, o ator Jorge Washington, o estilista Isaac Silva, o presidente do Olodum, João Jorge dos Santos, o presidente do Cortejo Afro, Alberto Pita, a coordenadora dos projetos da Avon, Mafuani Odara, ator Érico Brás, o ator Sérgio Laurentino, entre tantos outros reis e rainhas da realeza negra, que assim com o público saíram do Curuzu se sentindo o mais belo dos belos.
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