Capela dos Aflitos faz 241 à espera de “milagre” de reforma e memorial

Texto: Guilherme Soares Dias | Edição: Nataly Simões | Imagem: Cecília Bastos |Originalmente publicado no Alma Preta

O bairro da Liberdade, na cidade de São Paulo, foi o primeiro habitado por pessoas negras nos séculos 18 e 19, quando alguns escravizados começavam a conseguir a alforria e se estabelecer no local que ficava às margens daquela vila que é hoje a metrópole paulistana. Por lá, também ficavam o Pelourinho e o Largo da Forca, onde eram torturados e executados, respectivamente, os escravizados que cometiam atos considerados criminosos por seus senhores. Os negros mortos na forca ou em outros espaços eram destinados ao Cemitério dos Aflitos, que funcionou de 1775 a 1858 na região. Naquele momento, as pessoas brancas eram enterradas em igrejas.

Todos esses marcos foram apagados. Com exceção da Capela dos Aflitos, construída em 1779. Ela foi rodeada de edificações e resiste em um bairro conhecido pela cultura japonesa, que instalou um totem de arquitetura oriental quase em cima de sua construção. A capela pegou fogo na década de 1990, teve uma reforma, mas não é restaurada desde então, apesar de ser tombada pelo patrimônio público municipal e estadual. O prédio pertence à Arquidiocese de São Paulo, que prometeu aos integrantes da União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca), que a reforma “deve sair em breve”.

A Capela dos Aflitos, localizada na Rua dos Aflitos, 70, também ajuda a contar a história que dá nome ao bairro. É lá que está enterrado Francisco José Chagas, o Chaguinhas, cabo negro que integrava um destacamento do Exército chamado Batalhão dos Caçadores e foi um dos líderes da revolta por não receber salários equivalentes a dos militares portugueses. No dia 20 de setembro de 1821, ele foi enforcado no largo, com uma multidão de plateia, como era de costume. Uma espécie de exemplo para que outros não voltassem a cometer os mesmos crimes.

Algo inesperado aconteceu. A corda que mataria Chaguinhas arrebentou provocando os presentes a clamarem por sua absolvição. A história conta que isso repetiu-se três vezes. Até que na última as pessoas começaram a gritar “liberdade” em coro. Chaguinhas não foi perdoado e teria morrido a pauladas. Mas a partir dali, o Largo da Forca, passou a ser conhecido como Liberdade. O cabo foi considerado uma espécie de santo. E velas começaram a ser acendidas para ele. Em 1887, surge a Igreja Nossa Senhora da Alma dos Enforcados, que fica na Praça da Liberdade, 238.

O corpo de Chaguinhas foi levado para a Cemitério dos Aflitos, onde estaria enterrado. Na Capela dos Aflitos, uma porta de madeira recebe pedidos de milagres para o cabo, que não é reconhecido como santo pela igreja católica. As pessoas depositam papéis com pedido na porta e batem três vezes – mesmo número que a corda que o mataria arrebentou. Na grade que protege a igreja, há faixas agradecendo-o pelas graças alcançadas. O velário da Capela tem uma energia bem forte. Outra curiosidade é que, apesar de Chaguinhas ser conhecido como um cabo negro, é retratado em quadros presentes na capela, embranquecido e de cabelos lisos.

O cemitério dos Aflitos foi desativado em 1858 com a construção do Cemitério da Consolação. Os japoneses só chegaram à Liberdade no século 20. São Paulo crescia e o bairro passava por um processo de gentrificação, que expulsou seus primeiros moradores negros para outros mais distantes do centro. Hoje, o distrito tem muitos moradores vindos da China e da Coreia. Na praça principal do bairro, que ganhou em 2018 o adendo de “Liberdade-Japão”, assim como a estação de metrô da Linha 1-Azul passou a chamar-se “Japão-Liberdade”, não há estátua de Chaguinhas ou referências à memória da presença negra. Um apagamento histórico que o movimento negro tenta corrigir.

Memorial dos Aflitos

O escritor e jornalista Abílio Ferreira, articulador do movimento pela valorização e preservação do Sítio Arqueológico dos Aflitos, lembra que em dezembro de 2018 o terreno ao lado da Capela dos Alfitos, que pertence a um comerciante chinês, começava a receber a construção de um centro comercial quando foram descobertas nove ossadas que pertenciam ao Cemitério dos Aflitos. O local fica na Rua Galvão Bueno, 48, nos fundos da capela, e teve as obras paralisadas. Há um processo na Secretaria Municipal de Cultura para reconhecer o terreno como “utilidade pública” e desapropriar o terreno para que ali seja instalado o Memorial dos Aflitos, registrando a presença das pessoas negras na região. A Lei 17.310/2020 prevê a criação do memorial e já foi sancionada pelo poder executivo, mas os movimentos em prol da construção do memorial ainda pressionam para que ele de fato saia do papel. “O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) também reconheceu a área como sítio arquológico e deve contribuir com esse processo”, acredita Ferreira.

Além do restauro da igreja e da construção do memorial, a Unamca defende que o Beco dos Aflitos tenha acesso restrito de carros e melhor sinalização. “Há cargas e descargas o tempo todo, inclusive no horário de missa. Queremos que sejam retiradas as luminárias japonesas dessa rua. Não tem nada a ver com a história, além de placas sinalizando a capela, que é bastante escondida”, enfatiza a artesã Eliz Alves, representante da Unamca.

No dia 27 de junho, quando a capela completou 241 anos, uma missa virtual foi realizada no local com a presença do pároco da Igreja São Geraldo, a qual a capela faz parte. A esperança que fica é que as orações alcancem o “milagre” de ter a capela reformada e o Memorial dos Alfitos erguido.

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Redação

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