Humilhação, agressão e concorrência: o Carnaval dos profissionais da reciclagem

Catadores de latinhas realizam trabalham essencial na folia baiana e relatam seus desafios

“É muita luta, muita disputa de catador. Quase que me agrediram”. Essa foi a primeira fala que escutei ao chegar no Circuito Osmar no Carnaval de Salvador, neste domingo (11), para entrevistar profissionais da reciclagem, também conhecidos como “catadores de latinhas”. Maria Oliveira, 49 anos, dona de casa, relata que teve que tirar latas do próprio saco para não ser agredida por outra recicladora. 

Invisibilizados, esses trabalhadores e trabalhadoras realizam uma função essencial. Segundo dados da Secretaria de Meio Ambiente do Governo do Estado da Bahia, os 2.500 catadores e catadoras de materiais recicláveis, em dois dias de festa, já tiraram das ruas cerca de 37 mil kg de latinhas e plásticos. Contudo, a rotina de trabalho é repleta de adversidades, tornando-se tão pesada quanto.

Concorrência a necessidade
 Silvestre Rodrigues, 53 anos; Augusto César, 29 anos; Vagner Santana, 42 anos
Silvestre Rodrigues, 53 anos; Augusto César, 29 anos; Vagner Santana, 42 anos

Das doze pessoas entrevistadas, cinco pontuaram que a disputa entre os catadores é um dos maiores desafios. “É aquela concorrência com os meninos mais novos. Mas é assim, você deixa passar alguns e cata outros. Afinal, Deus fez a terra pra todo mundo, relata o reciclador, Silvestre Rodrigues, 53 anos, ex-alcoólatra que precisou aderir ao trabalho para poder custear remédios por uma questão de saúde.

Vagner Santana, 42 anos, pizzaiolo, churrasqueiro e hamburgueiro, também relata outros obstáculos. “Alguns policiais acham que a pessoa vai roubar. Fora as pessoas que discriminam e acham que você é mendigo. Mas não é isso, é a necessidade. Todo mundo tem”, comenta o pai de três filhos, que atua como reciclador, pelo primeiro ano, por conta do desemprego.


O trabalho também tem sido uma forma de economia para a realização de sonhos. É o caso do auxiliar administrativo, Augusto César, 29 anos. “A minha proposta é abrir o meu negócio, então tô reciclando mesmo, não pra gastar em porcaria. Mas pra poupar e abrir o meu negócio”, coloca. “Estou tentando bater a minha meta de pet. Se eu bater até as 7h da manhã, eu ganho R$100. Não é muito, mas com Deus é maravilhoso. Deus tem me honrado e me dado fôlego e força”, complementa.

Preconceito, violência e humilhações

No meio da celebração momesca, a alegria e a tristeza se misturam no mesmo bloco. Jackson Ribeiro, 52 anos, técnico de fogão, relatou um episódio de desrespeito. “Uma vez eu me senti humilhado porque não deixaram eu descer o Elevador Lacerda com as minhas latinhas. Estava todo mundo subindo e descendo, e eu não pude”, denuncia, emocionado. Outro fato compartilhado é o incômodo de foliões ao serem tocados pelo saco com as latas.

Jerônimo Barbosa, 25 anos
Jerônimo Barbosa, 25 anos

“Muitos discriminam. Às vezes a cerveja fede, a correria, o suor faz com que a gente fique com o odor mais ou menos. Outros chamam de preto, de sujo, mas eu não ligo. Isso só me dá força e foco”, relata Jerônimo Barbosa, 25 anos, pedreiro e carpinteiro, pai de 3 filhos. Mas há quem encontre solidariedade, como é o caso de Antônio Carlos, 37 anos. “Tem gente que discrimina de início. Mas tem gente que ajuda a gente, e junta [as latas]. A gente limpa a rua também”, aborda. 

Uma fonte que atua nos postos da Secretaria Municipal de Saúde durante o Carnaval, pontua os casos de agressões sofridas pelos profissionais. “Já presenciei situações e ouvi relatos de catadores que foram abaixar pra catar e levaram chutes de foliões, e outros até foram violentados com o próprio material de trabalho. Quem está curtindo não vê o que realmente acontece por trás de tudo isso”, expõe.

“A vida devia ser bem melhor, e será”
Vera Lúcia, 68 anos
Vera Lúcia, 68 anos

Como cantou Moraes Moreira, “a nossa dor da balança o chão da praça”. E mesmo com as adversidades, esses homens e mulheres mostram resignação, fé e esperança, ainda que se considerem explorados, como o reciclador Adalto José. “O pessoal da cooperativa explora a gente. Não dá café, não dá nada, e a gente trabalha como se fosse escravo. A gente não tem valor”, denuncia.

Contudo, permanecem resilientes e ativos. Passam por cima da dor, para realizar seus sonhos, ganhar sua renda, e sobreviver. “[Passo por] discriminação. Mas eu nem lembro, eu nem levo à sério”, comenta Vera Lúcia, recicladora, 68 anos, enfatizando a importância da sua atuação. “Eu tenho muito orgulho porque é um trabalho digno, melhor do que roubar ou apanhar da polícia. Eu sou feliz!”, declara. É a alegria como “resposta pra dor”*.

*Daniela Mercury, ‘Alegria e Lamento’

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Lucas de Matos

Olá! Eu quero te dar as boas-vindas à minha coluna. Sou um comunicador baiano que ama falar sobre gente, e por aqui você vai encontrar muito assunto sobre cultura, comunicação, dicas de leitura, e mais. Sou autor de 'Preto Ozado', livro que já vendeu mais de 1.600 exemplares e se tornou um minidocumentário. Viajo pelo Brasil em atividades literárias, participando de festas como FLICA, FLIP e FLIPELÔ. Falo sobre cultura para meus 22 mil seguidores no Instagram! Vamos conversar? 💬

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