Ilê Aiyê leva realeza negra para circuito esvaziado do Campo Grande

Guilherme Soares Dias

Todo terreiro é um templo. Um lugar de cultos ancestrais. O Ilê Axé Jitolu é o templo do bloco afro Ilê Aiyê. É lá que mora parte da família que fundou o bloco para preservar uma religiosidade que atravessou o oceano Atlântico vinda da África e se fundamentou no Brasil. É nesse solo sagrado que a figurinista Dete Lima coroa a deusa do ébano, Greicy Ellen Teixeira, escolhida na noite da beleza negra, em 15 de fevereiro.

Os panos vão sendo amarrados e adornados coroando a menina, que se torna deusa, a representante da beleza negra durante o carnaval. Ela sorri, enquanto jornalistas perguntam como se sente. “Esse é um momento único, que vou lembrar para sempre. É uma renovação da força da mulher negra. Afinal, somos lindas e belas”, afirma Greice Ellen. A foto de mãe Hilda Santos, que fundou a casa está na parede branca. A energia do espaço é forte e boa. A diretoria do Ilê faz parte da casa e vê somando os irmãos biológicos com os irmãos de santo. O ogan da casa de candomblé é também diretor do bloco, e assim por diante.

A festa que hoje é de coroamento outra noite era pra Oxalá. Um dos orixás máximos do candomblé que também tem suas músicas entoadas durante a saída do bloco. A cerimônia se completa com pipocas e milhos brancos atirados no público, como uma forma de pedir passagem. As pombas são soltas. Começa o carnaval para o bloco afro mais antigo do Brasil, nascido em 1974 como uma resposta pelo fato das pessoas negras não conseguirem acesso aos demais blocos. Até hoje apenas negros podem desfilar no Ilê. No muro do templo do bloco estão: o presidente Antônio Carlos dos Santos, o vovô do Ilê, a mãe de santo Hildelice Bento, Greice Ellen, deusa do ébano de 2020, a figurinista Dete Lima, e a secretária de cultura Arany Santana, que foi por anos diretora do bloco. “Preservamos muitas coisas aqui. Nesse barracão, onde os orixás estão presentes, onde aqueles jovens fundaram esse bloco na década de 70. Toda vez que piso aqui lembro dessa história”, reforça Arany.

A atriz Cris Vianna esteve no terreiro para ver a saída. Ela disse que há dez anos tentava ir para a saída do Ilê. “Estou muito emocionada de estar entre os meus, uma celebração preciosa e ancestral. Um presente para mim, como mulher negra”, afirma. Já o governador Rui Costa (PT) não foi por um problema de saúde. O prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM) escolheu ver Psirico ao invés de ir ao Curuzu, bairro em que fica a sede do Ilê. Talvez o medo de ser vaiado como ocorreu com seu vice e candidato à prefeitura Bruno Reis (DEM) durante a noite da beleza negra. Afinal, o Ilê Aiyê é também um bloco político. E as mulheres negras que são pré-candidatas à prefeitura passaram por lá.

A deputada estadual Olívia Santana (PCdoB) estava belíssima com um turbante e vestido amarelo. A secretária estadual de Promoção da Igualdade Racial Fabya Reis (PT) sorria e posava para fotos, enquanto Major Denice (PT), criadora da Ronda Maria da Penha, preferida de Rui Costa para a disputa da prefeitura, sorria da sacada. A socióloga Vilma Reis (PT) estava no público quando foi convidada para entrar na sede e foi ovacionada com gritos de “agora é ela”.

A saída atrasou. Os carros que ladeavam a Ladeira do Curuzu atrapalharam o fluxo. A falta de lixeiras fez com que o lixo tomasse conta da rua pós-festa. Mas nada impediu de que a saída do Ilê fosse bonita, como sempre. Quando os pombos voaram, os tambores começaram a tocar e a multidão foi envolvida pela música. Alguns metros para cima da Ladeira, os tambores se encontraram com o mini trio estacionado na frente da Senzala do Barro Preto, sede do bloco, e a cantora Iracema Kiliane, entoou a música do ano, que canta sobre Botswana. Ela divide o microfone com outros cantores, mas é a voz do bloco.

Mulheres e homens carregavam a realeza da fantasia do Ilê por um bairro em festa. O desfile vai até a Liberdade, onde todos entram em vãs e seguem para o circuito Campo Grande. Os desfiles do centro de Salvador foram esvaziados neste 2020. A reforma da Avenida Sete de Setembro foi concluída às vésperas do carnaval. Muitos trios nem subiram a Rua Carlos Gomes, contrafluxo do circuito. Há menos trios, menos ambulantes e menos gente assistindo o carnaval por lá. Há mais atrações nos bairros e menos investimentos no circuito popular do centro, que cada vez perde espaço para o circuito mais comercial, o Barra-Ondina.

Quando o Ilê entrou no Campo Grande, por volta das 3h, pouca gente esperava-o. Desfilou para quase ninguém. Até mesmo os ambulantes dormiam em seus postos. A TVE Bahia transmitiu a passagem do Ilê. O esvaziamento do circuito é triste, uma vez que o bloco canta temas urgentes e faz um dos desfiles mais bonitos. Os poucos presentes acompanharam o trio até às 6h e viram um nascer sol alaranjado e potente. Quem ficou, dançou até o fim e nem parecia que estava há horas dançando. “Desfilo há seis anos. Venho de São Paulo e me sinto revigorada para aguentar o ano todo”, diz a coordenadora pedagógica Yanê Batista, 28 anos, uma das mais animadas, com black loiro, que não tinha como não ser notada.

Na segunda (24), o Ilê voltou para a avenida. A previsão era de saída às 18h, mas o trio só partiu por volta das 23h. Foi um dos últimos da noite. Com atraso tão grande, havia mais uma vez pouca gente assistindo o Ilê, que novamente fez um espetáculo, com músicas eternizadas no carnaval e que cantam a beleza e o poder de ser negro. A banda Aiyê voltou para o circuito na terça-feira (25), sem cordas, mas sem os tambores no chão. Neste 2020, o Ilê desfilou oficialmente dois dias. Resultado da falta de verbas e apoio, já que tradicionalmente desfila três dias. O mesmo deve ocorrer com o bloco Filhos de Gandhi em 2021.

Resta saber se prefeitura e governo continuarão ignorando os blocos afros; se a falta de organização vai continuar fazendo com que haja cada vez menos gente no circuito Campo Grande e se o circuito do centro resiste a mais um carnaval. “Quem acabou com o carnaval do centro?”, pergunta uma pichação presente nas ruas do circuito.

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Redação

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