O Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF) pediu à Justiça Federal que obrigue a União a cumprir o compromisso de implementar o Centro de Interpretação e do Memorial da Herança Africana no Cais do Valongo, sítio arqueológico considerado patrimônio da Humanidade por representar a mais importante evidência física associada à chegada de africanos escravizados no continente.
O pedido foi feito no âmbito de ação civil pública ajuizada contra a União e a Fundação Cultural Palmares em 2018. A instalação do Centro de Interpretação e do Memorial no Galpão Docas Pedro II é uma obrigação estabelecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e deveria ter sido cumprida até 2019.
Em abril de 2023, representantes da União haviam se comprometido, em audiência judicial, a apresentar, até julho daquele ano, a revisão do projeto executivo de reforma do prédio de Docas, contratado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Novos prazos foram concedidos pela Justiça em agosto e em dezembro, porém não foram cumpridos pelo governo federal. O projeto de reforma custou R$ 2,2 milhões aos cofres públicos e já foi concluído e debatido pelo Comitê Gestor do Cais do Valongo.
Localizado na região portuária, ao lado do Cais do Valongo, o Galpão Docas Pedro II foi projetado pelo engenheiro negro André Rebouças e construído na década de 1870, sem uso de mão de obra escravizada. Desde 2021, o imóvel está fechado, por não ter sido instalada proteção contra incêndio.
A pedido do MPF, foi realizada audiência judicial no último dia 13 de março. Na ocasião, os representantes da União e do Iphan alegaram que o problema é ‘complexo’ e demandaria a contratação de uma consultoria, por parte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Afirmaram, também, que não poderiam apresentar nenhuma definição sobre o projeto antes de setembro de 2025.
DEMORA INACEITÁVEL
Para os procuradores da República Sergio Suiama e Jaime Mitropoulos, responsáveis pela ação civil pública, “a proposta de postergar em mais 18 meses a definição sobre o início das obras de reforma do prédio é inaceitável porque o prazo pactuado com a Justiça venceu em julho de 2023”.
Os documentos juntados ao processo comprovam a ineficiência e a falta de efetividade, demonstrando injustificado atraso em cumprir as ações que a própria administração pública havia se comprometido. “O projeto executivo da reforma do Galpão Docas custou aos cofres públicos R$ 2 milhões. Foi elaborado com o acompanhamento do Iphan e debatido com a sociedade civil. O que a União pretende fazer com ele? Qual o sentido de esperar mais um ano e meio para que ela chegue a uma definição e faça a licitação para as obras de reforma?”, questionam os procuradores.
Na petição à Justiça, o MPF pede a intimação da União “para que cumpra o ponto 9 do acordo judicial homologado, ou seja, para que, no prazo de 30 dias, apresente em juízo avaliação técnica do projeto executivo de reforma do Galpão Docas, assinada, inclusive, por profissional de arquitetura ou engenharia habilitado, indicando todos os aspectos do projeto executivo entregue que precisarão ser revistos para que se dê prosseguimento à licitação da obra, o modo como será realizada eventual revisão do projeto, o cronograma do processo de revisão com prazo não superior a 120 dias para conclusão, e a reserva dos recursos financeiros necessários para o início das obras, sob pena de multa cominatória diária não inferior a R$ 100 mil”.
BNDES E VIVA PEQUENA ÁFRICA
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou em novembro de 2023 ações para preservação e valorização da memória e herança africanas na Pequena África.
Umas das medidas é um acordo de cooperação técnica com vários órgãos do governo, incluindo o Iphan e os ministérios da Cultura e da Igualdade Racial, para a elaboração de um planejamento físico-espacial da região. O objetivo é implantar ali um distrito cultural no prazo de três anos.
Também foi anunciado o consórcio que gerirá o edital Viva Pequena África, que visa fortalecer instituições culturais locais, estruturar uma rede de representantes da memória e herança africanas no Brasil e incentivar a criação de uma nova rota turística conectada a roteiros de afroturismo nacionais e internacionais.
O consórcio formado pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap), Instituto Feira Preta e Diaspora Black será responsável por ferir um fundo de R$ 20 milhões, sendo metade oferecida pelo Fundo Cultural do BNDES e o restante a ser captado junto a doadores.
PEQUENA ÁFRICA
O Cais do Valongo fica em uma região conhecida como Pequena África, por reunir uma população majoritariamente negra e por ter uma história ligada à diáspora africana, com sítios como o Cemitério dos Pretos Novos, local de sepultamento de africanos recém-desembarcados no Valongo que morriam antes de serem vendidos, e a Pedra do Sal, considerada um dos berços do samba urbano carioca.
A região recebe um tour com o nome de Pequena África, organizado por empresas como a Sou Mais Carioca, que é parceira do Guia Negro. Por lá também fica o Museu da História e da Cultura Afro-brasileira (Muhcab Rio).
HISTÓRIA
Patrimônio cultural mundial reconhecido pela Unesco, desde 2017, o cais foi, durante os séculos 18 e 19, o principal porto de desembarque de africanos escravizados nas Américas, segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A partir de 1774, por determinação do Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Brasil, o desembarque de escravizados no Rio foi integralmente concentrado na região da Praia do Valongo, onde se instalou o mercado de escravizados que, além das casas de comércio, incluía um cemitério e um lazareto (estação de quarentena para viajantes marítimos).
O objetivo era retirar da Rua Direita, atual Primeiro de Março, o desembarque e comércio de africanos escravizados. Após a chegada eles eram destinados as plantações de café, fumo e açúcar do interior e de outras regiões do Brasil. Os que ficavam no Rio de Janeiro, geralmente eram os utilizados em trabalhos domésticos, ou nas obras públicas. A vinda da família real portuguesa para o Brasil e a intensificação da cafeicultura ampliaram consideravelmente o tráfico escravagista.
Em 1811, com o incremento do tráfico e o fluxo de outras mercadorias, foram feitas obras de infraestrutura, incluindo o calçamento de pedra de um trecho da Praia do Valongo, que constitui o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo.
Após a proibição do tráfico transatlântico em 1831, o local foi desativado depois de receber 1 milhão dos 5,5 milhões de escravizados que chegaram ao Brasil. O tráfico transatlântico foi proibido por pressão da Inglaterra – norma solenemente ignorada, que recebeu a denominação irônica de lei para inglês ver. Doze anos depois, em 1843, o Cais do Valongo foi aterrado para receber a Princesa das Duas Sicílias e Princesa de Bourbon-Anjou, Teresa Cristina, esposa do Imperador Dom Pedro II, recebendo o nome de Cais da Imperatriz.
Com a assinatura da Lei Eusébio de Queirós, em 1850, pôs-se fim verdadeiramente ao tráfico para o Brasil, embora a última remessa conhecida date de 1872 e a escravidão tenha persistido até a Abolição, em 1888.
Em 1911, com as reformas urbanísticas da cidade, o Cais da Imperatriz foi aterrado.
REDESCOBERTA
Durante as obras do Porto Maravilha, com as escavações realizadas no local em 2011, foram encontrados milhares de objetos como parte de calçados, botões feitos com ossos, colares, amuletos, anéis e pulseiras em piaçava de extrema delicadeza, jogos de búzios e outras peças usadas em rituais religiosos. Entre os achados raros, há uma caixinha de joias, esculpida em antimônio, com desenhos de uma caravela e de figuras geométricas na tampa.
Em 2012, a prefeitura do Rio de janeiro acatou a sugestão das Organizações dos Movimentos Negros e, em julho do mesmo ano, transformou o espaço em monumento preservado e aberto à visitação pública. O Cais do Valongo passou a integrar o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, que estabelece marcos da cultura afro-brasileira na Região Portuária, ao lado do Jardim Suspenso do Valongo, Largo do Depósito, Pedra do Sal, Centro Cultural José Bonifácio e Cemitério dos Pretos Novos.
Em 20 de novembro de 2013, Dia da Consciência Negra, o Cais do Valongo foi alçado a patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro, por meio do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH). Representantes da Unesco também consideraram o sítio arqueológico como parte da Rota dos Escravos, sendo o primeiro lugar no mundo reconhecido pela Unesco. O evento reforçou ainda mais a intenção da cidade de lançar a candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade.
O dossiê elaborado ao longo de um ano de trabalho, coordenado pelo antropólogo Milton Guran, resgata a história trágica e cruel do tráfico negreiro e analisa com detalhes a importância histórica e o simbolismo do sítio arqueológico para todos os brasileiros, em especial os afrodescendentes.
Para o Iphan, o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo não só representa o principal cais de desembarque de africanos escravizados em todas as Américas, como é o único que se preservou materialmente. Pela magnitude do que reprsenta, coloca-se como o mais destacado vestígio do tráfico negreiro no continente americano.
Em 2019, o comitê gestor, exigido pela Unesco para acompanhar ações de preservação do sítio arqueológico e que havia sido criado um ano antes, foi extinto, depois de se reunir apenas duas vezes. O comitê só foi recriado em março de 2023.
Com informações do MPF, Agência Brasil e Iphan.
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