Museu Afro Brasileiro, de Salvador, abriga acervo racista de antigo “museu dos horrores”

Texto: Guilherme Soares Dias/Fotos: Heitor Salatiel*

Em tempos de discussão sobre racismo urbano e sobre o destino de estátuas de figuras hoje lidas como opressoras e racistas, que estão sendo derrubadas em diversos países, o Museu Afro Brasileiro (Mafro), localizado no Pelourinho, em Salvador, já abriga peças de instituições que expunham a cultura negra como bizarrice ou caso de polícia.

Entre as relíquias do acervo do Mafro estão peças afro-religiosas do antigo museu Estácio de Lima e faziam parte das coleções da Faculdade de Medicina, que funcionou onde hoje fica o Mafro. Estácio de Lima foi médico e segue a linha de começar uma coleção a partir de objetos coletados pela repressão policial aos terreiros de candomblé. “Ele monta um ‘museu dos horrores’ com peças ligadas à religião afro e a patologias médicas, tráfico de drogas, cangaço, fetos mal formados. Ou seja, a cultura afro-religiosa era exposta como anomalia, crime. É uma coleção que documenta essa intolerância”, afirma o coordenador do Mafro, Marcelo Cunha.

O Museu Afro Brasileiro recebeu as peças em caráter de comodato, já que antes pertenciam ao Estado da Bahia. Não há como saber de onde as peças saíram e há um processo de doação definitiva das peças para o museu. “Há um movimento para que essas peças ligadas às religiões de matriz africana que foram apreendidas nos terreiros no começo do século passado e estão em museus da polícia sejam transferidas para museus geral. No Rio, há acordos para que as peças saíam do museu da polícia e sejam destinadas para o Museu da República”, contextualiza.

Assim como outros espaços de cultura, o Mafro está fechado desde a segunda semana de março por conta da pandemia da Covid-19, o novo coronavírus, e ainda não tem perspectiva de retomar às atividades. Os meses sem abrir as portas deve impactar diretamente nas atividades da instituição, que não possui orçamento próprio apesar de ter um dos mais importantes acervos africano e afro-brasileiro do país. O museu é ligado à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e conta com o dinheiro da bilheteria para realizar exposições e atividades.

Sem essa verba, o museu não perdeu funcionários, como ocorreu com o Museu Afro de São Paulo, mas também não têm recursos entrando para novas atividades. O Mafro, de Salvador, foi criado em 1974 e inaugurado em 1982 dentro do Centro de Estudos Afro Orientais da UFBA. Ao todo, são 1,5 mil peças de duas coleções: uma africana e uma afro-brasileira. A primeira surge a partir de uma pesquisa e de aquisições feitas pelo fotógrafo francês Pierre Verger a países da África Ocidental, como o Benin. “O projeto inicial do museu era dele, que traz elementos de cultura material e objetos ligados à religiosidade africana, não necessariamente o candomblé”, explica o coordenador do museu, Marcelo Cunha.

A segunda é uma coleção afro-brasileira, que contém, por exemplo, elementos doados por terreiros. “O museu foi entendido como lugar de preservação. Recebemos indumentária e peças de adereço. Já partes mais sagradas, como assentamentos, foram compradas ou encomendadas a ferreiros”, afirma. O acervo de talhas do artista argentino Caribé, que representam os orixás, pertencem a uma instituição bancária e estão em comodato no museu. A obra, tombada como patrimônio municipal, ocupa uma sala inteira e, mesmo feita por um artista branco, é uma das que causa maior interesse do público. “É uma sala monumental e exuberante, que traz a iconografia de orixás e ferramentas. Tudo que Caribé produziu é baseado em todo o resto do museu, uma espécie de síntese”, classifica Cunha.

O museu tem apenas seis funcionários exclusivos. Os demais são bolsistas e outros servidores federais cedidos para a instituição. A equipe toda é de menos de 20 pessoas. Também não há orçamento próprio. A verba utilizada é parte da destinada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA e outra da bilheteria. “O fechamento agora vai ter impacto mais para frente”, pontua o coordenador do museu.

Apesar de não ter equipe suficiente para abrir aos fins de semana, o Mafro é um dos museus mais visitados do centro histórico de Salvador. Em 2019 cerca de 30 mil pessoas passaram por lá. Os ingressos custam R$ 6, mas há política de meia entrada e gratuidade. “As visitas de escolas particulares ajudam a custear as de escolas públicas, mas nunca houve política a fim de entender a importância desses lugares e contratar pessoas para ter esse funcionamento aos sábados e domingos”, diz Cunha.

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Exposições

Cerca de 150 peças ficam expostas em três salas do museu, sendo que uma é dedicada às obras de Caribé. São cerca de 800 metros quadrados de exposição. O restante do material está em reserva técnica. São obras como máscaras geledes e tecidos proverbiais trazidos por Pierre Verger da África. “Essa é uma coleção africana do século 20, que vem de pesquisa e compras. Não é alvo da colonização como foi no século 19 com peças de museus europeus”, afirma. Entre as obras afro-brasileiras, há séries de roupas de pai de santo, que incluem um vestido utilizado por Mãe Menininha do Gantois em ritual religioso e artefatos encomendados por Verger à ferreiros a cidade.

O museu tem peças ligadas à capoeira, doadas por Mestre Pastinha, Mestre Bimba, e Cobrinha Verde, que fariam parte de uma exposição temporária prevista para 2020 e que agora foi adiada para 2021. Artefatos dos blocos de carnaval e de afoxé também estão guardados.

Militância

Marcelo Cunha foi gestor do Mafro do fim da década de 1990 até 2010 e está à frente da instituição desde 2018, mas não tem cargo de diretor, que inexiste no organograma da instituição. Ele lembra que nos últimos anos, o museu já fez exposição sobre genocídio da juventude negra e que assim como o Museu Afro Brasil, de São Paulo, e o Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana (NMAAHC), de Washington, tem perspectiva política de unir forças e vozes da diáspora africana. “São museus de militância, que têm importância política independente de quem está à frente e um papel educativo”, diz ele, que já atuou no museu paulistano também.

Para Cunha, a maior diferença para os outros é que o Mafro é um museu universitário, sem dotação orçamentária, mas gerido pela universidade, que destina bolsas de iniciação científica e pesquisas. “Somos um observatório de como o discurso sobre a questão da negritude e das religiões de matriz africana é desenvolvido na escola. Até por isso já fomos alvos de intolerância de diversos setores”, lembra.

Sem visita virtual, o museu ainda não tem perspectiva de data de abertura e aguarda para definir qual a próxima exposição que será exibida. “Não temos perspectiva de abertura ainda. É um lugar de atendimento público, que vai esperar para voltar ao normal. Só retomaremos após a abertura da universidade”, afirma o coordenador do Mafro.

Matéria originalmente publicada no Alma Preta

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Redação

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