É preciso criar novos imaginários para as pessoas pretas. Mais do que viver em permanente resistência, falar das dores e compartilhar lutas que se avolumam, urge uma necessidade de mudança de paradigmas. Queremos amar, prosperar, realizar sonhos e construir, com essas premissas, outras narrativas. Não é uma fuga de realidade, mas um fortalecimento de novas abordagens.
E é dessa forma que o escritor Marlon Souza tece a história de ‘O Silêncio que a Chuva Traz’ (Editora Malê, 2021), romance que apresenta João: um jovem periférico, gay, num ambiente familiar de rejeição paterna e repressão religiosa por sua orientação sexual. Contudo, engana-se quem pensa ser essa mais uma história cuja a dor é protagonista. A capa já entrega que João viverá um afeto, pois figuram dois homens pretos enlaçados num abraço íntimo.
Um deles é Akin, com seus volumosos dreads. Veterano do curso de Jornalismo, Akin é um dos poucos negros daquela faculdade. Conhece João no dia da matrícula e, logo no primeiro dia de aula, eles se conectam de maneira romântica. Foi muito rápido? Sim! Mas por qual razão não podemos ter histórias de amor à primeira vista? Já foram tantas contadas em romances embraquecidos que viraram best-sellers e filmes… Essa é uma conversa sobre novos imaginários.
“Seus lábios carnudos conversaram com os meus de uma forma que nunca havia experimentado, como se tivesse beijado uma pessoa pela primeira vez. […] Não temos pressa. Temos tesão, mas não se trata somente disso. Há também um sentimento diferente; um sentimento que busco desde meu primeiro beijo; um sentimento que, outrora, nunca fui capaz de encontrar.”
Entretanto, a obra traz, irremediavelmente, imagens já conhecidas para muitas pessoas negras: o silenciamento da subjetividade, a objetificação do corpo, a discriminação racial, a violência parental, o autoódio, a tristeza. E é exatamente por isso que Marlon ganha um ponto a mais. A sua escrita escancara a dureza, e abre brechas para a sutileza de um presente/futuro diferente, afetuoso. É um respiro, uma aventar de outras possibilidades existenciais.
O autor também coloca elementos e referências da cultura preta de maneira sutil. Seja pelas letras de Dona Ivone Lara estampadas numa camisa, pela menção à obra ‘Um Defeito de Cor’ de Ana Maria Gonçalves, nas rodas de jongo e no baile charme. Nada é panfletário em sua escrita que, mesmo nos momentos mais ásperos, carrega uma leveza que pode te fazer ler o livro de maneira ininterrupta.
Acredito que há muito de Marlon em João e Akin, assim como há muito de mim e de outros homens pretos que podem se identificar com essa leitura. Quem dera já houvesse um livro de tal natureza em minha adolescência, pois a representatividade permeia vários aspectos fundamentais para essa fase crucial de construção identitária. Por isso, o adulto de hoje se deixou mergulhar e dançar nessa chuva de afeto. E estende o convite para você, leitor/a!
O Silência que a Chuva Traz
Marlon Souza
Editora Malê, 2021
188 p.
R$42
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