Peças de religiões de matriz africana saem da delegacia para Museu da República

O Museu da República passa a abrigar a partir de 19 de junho o Acervo Nosso Sagrado, composto por 519 objetos de religiões de matriz africana que foram apreendidas entre o fim do século XIX e o início do século XX pela polícia fluminense. O acervo permaneceu apreendido por quase um século no Museu da Polícia do Estado do Rio de Janeiro. A assinatura do termo de cessão definitiva acontece no Ilê Omolu Oxum, uma das Casas de Axé mais tradicionais do Brasil e sede do Museu Memorial Iyá Davina – primeiro museu etnográfico do Rio de Janeiro dedicado às Comunidades Tradicionais de Terreiro.

O Museu da República recebeu no dia 21 de setembro de 2020 o acervo das religiões de matriz africana. Fruto de grande mobilização, o movimento “Liberte Nosso Sagrado”, em agosto de 2020, conseguiu a vitória com a assinatura do termo que garantiu a transferência do acervo da Polícia Civil ao Museu da República. O material que integra o acervo, e estava sob tutela da Sepol, conta com 519 objetos sagrados para as religiões da umbanda e candomblé, apreendidos entre 1889 e 1945. Tais violações ocorreram nas primeiras décadas da República, particularmente no período entre os anos de 1920 e 1930, ainda que desde a Carta Constitucional de 1891 já se estabelecesse no país o Estado laico e a liberdade de crença e culto.

Os objetos apreendidos a partir dessas invasões violentas por parte do Estado foram depositados no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, compondo, ao lado de outros materiais apreendidos por forças policiais, exposições organizadas na instituição. Em 1999, quando a sede desse Museu é transferida para o prédio histórico da Rua da Relação, nº 40, no centro carioca, todos os objetos da ‘Coleção Museu de Magia Negra’ foram guardados em caixas e assim permaneceram até setembro de 2020, com acesso vetado ou muito restrito de pesquisadores e aos integrantes das comunidades tradicionais de terreiro.

”A Coleção Nosso Sagrado, ganha nova vida, encarna novos sentidos e significados, projeta-se mais viva e mais livre num futuro que há de trazer mais vida, mais conhecimento, mais pesquisa, mais ações educacionais e mais força para combater o racismo religioso” – garante Mário Chagas, diretor do Museu da República e presidente do MINOM (Movimento Internacional para uma Nova Museologia).

O acervo

Trata-se hoje de 519 peças. O seu primeiro conjunto reunia 126 peças que, em 1938, foram tombadas pelo então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-SPHAN, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN, constituindo o primeiro tombamento etnográfico do país inscrito no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.

Para Mãe Meninazinha de Oxum, a recuperação do acervo já faz parte da história do Brasil e merece ser comemorada. A matriarca destaca ainda a importância do trabalho conjunto entre a Instituição e as comunidades de terreiro. “Estou muito feliz e orgulhosa com a vitória do povo de axé, depois de tanta luta para termos o nosso sagrado tratado com o respeito que merece. A gestão compartilhada desta coleção, entre o Museu da República e grupo de trabalho formado por lideranças religiosas de matriz africana é um grande passo no combate à intolerância religiosa, que sofremos historicamente”, enfatiza a dirigente do Ilê Omolu Oxum.

A transferência da Coleção ‘Museu de Magia Negra’ para o Museu da República é um passo preciso na direção de projetos que lancem luz sobre esse patrimônio cultural, garantindo, não somente a sua organização, preservação, comunicação e acesso, mas também justiça e reparação social, com afirmação do direito e do respeito à diversidade religiosa brasileira. E um dos primeiros passos rumo a mais avanços, nesse sentido, também vale destacar foi a reivindicação atendida dos povos de terreiro para a troca do nome da coleção para Acervo Nosso Sagrado e a cessão definitiva do acervo.

A história do acervo virou filme

Em 2017 essa história foi contada a partir desses objetos sagrados e mostra como as comunidades tradicionais de terreiro eram criminalizadas, seus religiosos perseguidos e seus objetos sagrados apreendidos. O documentário Nosso Sagrado, (dirigido por Fernando Sousa, Gabriel Barbosa e Jorge Santana), produzido pela Quiprocó Filmes em parceria com a campanha Liberte Nosso Sagrado, impulsionada por diversas lideranças religiosas e organizações da sociedade civil, traz à tona o passado dessas comunidades. Além, também, da coleção que levava o nome de “Museu de Magia Negra” e o processo para libertar os objetos sagrados que estavam há mais de 100 anos no antigo DOPs do Rio de Janeiro. O documentário foi recentemente licenciado para o Canal Brasil e, atualmente, está disponível na plataforma kweli.tv

Em 2020,  o curta Respeita Nosso Sagrado, que está em processo de licenciamento para o canal Prime Box Brazil, conta justamente a história sobre a transferência do acervo.

”O Acervo Nosso Sagrado, é para além de peças ou objetos relacionados às religiões de Matriz Africana, simbolizam nossa história e memória dos nossos ancestrais, espoliados de forma violenta e cruel de nossos espaços de culto e de seus adeptos. O retorno destas peças sagradas do Museu da Polícia Civil para o Museu da República cumpre um papel de reparação histórica às populações negras e suas contribuições à sociedade brasileira tão negligenciada pelo Estado Brasileiro. Ver que hoje este acervo sagrado está em um espaço digno e nobre, nos traz alegrias e dignidade que representam a tão desejada democracia brasileira e sua constituição pela liberdade religiosa” – celebra Adailton Moreira Costa, Babalorixá do Ilê Axé Omiojuaro.

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Redação

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