Rússia é linda, racista e homofóbica

Guilherme Soares Dias

Antes mesmo de chegar na Rússia, soube que poderia ter problemas por lá. Quando estava planejando ir a Moscou, um amigo recomendou que eu não fosse dizendo que os russos têm preconceito com negros. Ele comentou que mesmo sendo europeu, branco e saber um pouco da língua local se sentiu acuado no metrô. Mas o ano era 2016 (não 1916) e eu não poderia ir a um país por ser negro?

Eu estava no quarto mês de um mochilão que durou nove e no décimo dos 25 países pelos quais passei naquele ano. Já tinha enfrentando outras situações desconfortáveis e resolvi seguir para lá. Na capital russa, encontrei com uma amiga brasileira de ascendência japonesa. Ao chegar, ela pegou uma cartilha para turistas num guichê do aeroporto dizendo que árabes, pessoas de pele escura e asiáticos não deveriam falar sua língua materna alto durante a noite e pedindo cuidado. Isso marcou nossa experiência por lá. Estávamos nos reencontrando depois de um tempo longe e, apesar da animação, tínhamos receio de falar alto na rua. Eu demorei para me sentir à vontade no país. E, confesso, que fiquei aliviado ao sair de lá sem ter passado por nenhum incidente mais forte de racismo.

Enquanto fazíamos turismo, ríamos baixo e tentávamos não chamar atenção. Mas eu era um dos pouquíssimos negros circulando por lá. Em São Petesburgo, fizemos amigos e fomos ver a ponte que se abre de madrugada. Um evento que reúne centenas de pessoas. A maioria jovens se divertindo despretensiosamente. Ríamos e falávamos alto. Um russo me fez um sinal de cala a boca. Nunca vou esquecer aquele gesto direcionado apenas para mim. Como estávamos em grupo, ignorei e segui feliz: ele e tantos outros iam ter que conviver com a minha cara preta naquele e outros espaços que “não foram reservados pra mim”.

Na contramão, uma surpresa boa foi chegar num parque de Moscou e ver um grupo tocando berimbau, com roupas coloridas e… jogando capoeira. Um professor baiano radicado na cidade iniciava alunos locais numa das expressões culturais mais afro-brasileiras. Foi bonito de ver.

Orientais são os negros da Rússia. A Rússia é um país de maioria branca, mas nos esquecemos de uma coisa: grande parte do país fica na Ásia (outra parte na Europa). Isso significa que boa parte da população tem traços orientais, como olhos puxados (levemente ou não). Como ocorre em outros países do mundo, há uma tentativa de ocidentalização, portanto, as pessoas da TV e das revistas são as que têm menos traços orientais.

Outra coisa que foi gritante para mim foi que as pessoas com empregos braçais (como trabalhadores em obras) são os orientais vindo de países da ex-União Soviética. Também vimos essas pessoas sendo abordadas sem mais nem menos pela polícia no metrô para conferir se estavam legais no país. Foi interessante ver o incômodo que isso causava na minha amiga de ascendência oriental que viajava comigo e perceber o quanto nós, negros, normalizamos isso por vivermos o mesmo, de forma sistemática aqui no Brasil.

Gays. Ah, também não tinha casais gays pelas ruas ou pelo menos não eram vistos de mãos dadas, fazendo carinhos ou quiçá dando beijos. Isso porque há uma lei de 2013 que proíbe demonstrações homoafetivas em ambientes públicos, que podem ser consideradas ‘propagandas de relações sexuais não tradicionais feita a crianças e adolescentes’. Para turistas, o ‘crime’ pode render até a deportação.

“Eles (os gays russos) não podem andar de mãos dadas na rua, correndo o risco de agressão, ou revelar a orientação sexual em público, podendo perder o emprego. Quem se declara homossexual, não fala onde mora, por medo. É um dos raros países em que o opressor tem mais respeito do que o oprimido”, diz Vinicius Mesquita, editor do documentário “Do outro lado”, da TV UOL, que conta como é ser homossexual no país. Agora, com a Copa, o Itamaraty reforçou a recomendação aos casais homossexuais brasileiros para evitarem gestos de carinho nas ruas.

Não soube de nenhuma orientação específica para pessoas negras. Afinal, o que ocorreria se um brasileiro sofrer racismo por lá?

Sinalização. Também me incomodou a falta de placas, de cardápios e outras informações em inglês. A Rússia usa o alfabeto cirílico, que é diferente do nosso, o que torna quase impossível entender a comunicação visual. Além disso, a maior parte das pessoas parece não falar inglês. Mesmo tentando entre mulheres jovens (geralmente as que mais falam a língua em vários países) algumas vezes ficava na mão ao pedir informação.

Alguns russos pareciam um pouco emburrados e outros mostravam pouca simpatia ao ver que não falava a língua local. Mas muitos ajudaram (ou tentaram, mesmo sem falarmos uma língua em comum). E as pessoas que conhecia por meio de outras eram bastante abertas e solícitas. Parecia que as conhecia há anos.

Beleza. Bem, depois de apontar algumas feridas do país de Putin já podemos chegar ao melhor: Moscou tem os parques mais bonitos do mundo! Esse ranking foi feito com base nas minhas experiências de viagem. E o que posso dizer é que a infraestrutura dos parques de lá impressiona: muito verde, fontes dançantes, áreas de lazer e construções grandiosas.

O museu do cosmonauta é interessante. Vale também um tour pelas estações de metrô construídas como “palácios do povo” pelos governos socialistas. Bem, e o básico é ir na Praça Vermelha, visitar o Kramilim (sede do governo russo) e o túmulo de Lênin. Quando estive por lá, o centro expandido de Moscou passava por uma revitalização em que aumentava o espaço para pedestres e diminuía o de carros <3. Em São Petesburgo, destaque para as igrejas, Museu Hermitage, para o qual vale reservar pelo menos um dia, e ver a ponte subindo na madrugada.

Interessante que mesmo com esses atrativos, costumo dizer que é um país que fiz o “check” na lista. Por enquanto, não tenho vontade de voltar. Talvez pelo descrito acima, talvez por que falte tantos outros para conhecer. O que sei é que ninguém vai me impedir de ir em lugar nenhum por ser quem sou. Eles vão ter que nos engulir! ; P

@guianegro

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Redação

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10 comentários

  1. Estive na Europa algumas vezes; uma vez nos Estados Unidos e também já fui nos 3 países mais ao sul da América do Sul, nossos vizinhos. Sou de origem portuguesa e, na Europa, me viam como europeu; achavam que eu era espanhol, assim que percebiam que eu era turista. Nos Estados Unidos, acho que me viam como latino. Pensei que na Rússia muitos falassem inglês. Nunca estive no leste europeu mas a barreira da comunicação, sem ter como me comunicar, nem com um básico de inglês, ficaria bem difícil.

  2. Gostei muito do relato. Triste ver que o governo do Putin está levando a Rússia a se tornar um país cada vez mais intolerante. Mas é como dizem: a Rússia nunca viveu a democracia de verdade.

  3. Oi Guilherme!

    Seu post foi extremamente rico e revelador. A Rússia é um daqueles lugares que tenho muita vontade de conhecer, justamente para sair um pouco da zona de conforto. Fico com o pé atrás, porém, com o tanto de risco que estaria disposta a me submeter sendo uma mulher negra, mas penso parecido com você e a ideia de não poder visitar um país (agora em 2018) por ser negra é incabível.

    Relembro que historicamente toda mudança começa com a não-conformidade das partes afetadas, por mais arriscado que seja.

    Obrigada por compartilhar sua experiência e trazer à tona informações sobre a Rússia atual.

    Abraço! =)

  4. Como todo país que promove a segregacao, o racimo, a sociedade nao evolui socialmente, fica com aquela catinga racista, xenofobica que atrasa o desenvolvimento social. Por isso quenao vou la’!

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