Quando os últimos raios solares atingem a baía de todos os santos o mar escorre prata iluminando corpos negros deitados na praia de pedra, vestidos com pequenas roupas de banho de oncinha ou neon. O Solar do Unhão é um cartão postal pronto e praia de visita obrigatória para quem vai a Salvador. Na cidade, o turismo volta a renascer pós pandemia e começa a fazer a jus à capital mais negra do Brasil. Nesse novembro, ainda chuvoso, mas que precede o verão e no qual se comemora o Dia da Consciência Negra (20), Salvador ganha novos negócios e roteiros afrocentrados que fortalecem a identidade local.
Somente no Pelourinho são cinco novos afroempreendimentos. O Restaurante Ó Pai Ó, do ator Erico Braz, foi inaugurado na última sexta (5) e se junta ao Malembe, que pertence as empresárias, Milena Moraes, Daiane Menezes, Diana Rosa e Mônica Tavares. As duas últimas preparam a abertura do Roma Negra, espaço que além de comida e bar funcionará como centro cultural e vai abrir em 21 de novembro. O ator, diretor e filósofo Rodrigo França prepara junto com seu sócio, o articulador cultural Herlon Miguel, o Consulado Rosa Malê, que deve inaugurar antes do fim do ano no Pelourinho.
Ainda por lá, o Zumvi Arquivo Fotográfico, finalmente, terá uma sede que poderá ser visitada e funcionará como centro expositivo e loja do material do acervo, que abriga cerca de 7 mil fotos do movimento negro nos últimos 40 anos. Já a Casa do Hip-Hop da Bahia será inaugurada, em Salvador, em 12 de novembro, Dia Mundial do Hip-Hop. Localizada no centro histórico da cidade, a Casa do Hip-Hop agregará formação, inovação e arte-educação, no melhor estilo do quinto elemento do Hip-Hop: o conhecimento.
O Pelourinho, também conhecido como centro histórico, é ocupado, na sua maioria, por empresários brancos. Nos últimos anos, espaços como Atelier Cabuloso, Botica Rhol, Katuka Africanidades, Atelier Raimundo Bida, Regina Navarro Bella Oyá, de empresários negros, se juntaram aos tradicionais Cravinho do Carlinhos, Cantina da Lua, Negro’s Bar e Restaurante Alaíde do Feijão.
Os blocos afros, como Olodum e Ilê Aiyê, mantem lojas que comercializam peças ao longo do ano e voltaram a reabrir. A praça Praça Jubiaba tem uma vista linda e abriga o Centro Cultural do Reggae. O Memorial das Baianas de Acarajé teve sua estátua de uma baiana recolocada há três meses, após dois anos em que o primeiro monumento foi queimado. A sede da Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), de 1832, primeira caixa de assistência da população negra, passou a receber visitas mais frequentes.
O Guia Negro realiza passeios pelo Pelourinho, como a Caminhada Salvador Negra e também por bairros como Liberdade-Curuzu Tour e Passar uma tarde em Itapuã. A Afrotours faz rotas por terreiros, como o Caminho dos Orixás e leva para a cidade de Cachoeira, onde a Casa Preta Hub abriu um espaço dedicado a afroempreendedores em agosto. São empresas de pessoas negras que não foram contempladas no edital da Prefeitura de Salvador que pretende investir R$ 1 bilhão no afroturismo e já começa a sair do papel.
O Afropunk, maior festival de cultura negra do mundo, ganha edição em Salvador em 27 de novembro. O Afropunk Bahia será virtual, mas promete agitar a cidade com a presença de influenciadores negros assistindo a transmissão e incentivo para que o público veja o festival com “looks lacração” em casa ou em bares, como costumava fazer nos eventos ao vivo nos cinco países em que está presente.
Visão colonizada
Mas nem todo mundo que visita a Bahia, consegue captar o movimento negro que se expande. O jornalista Silas Martí, que é editor do caderno Ilustríssima da Folha, e viajou para a cidade, escreveu uma matéria focada na branquitude elitista que dizia que são hotéis como Fasano e Fera que estão ajudando a tirar Salvador da letargia pós pandemia. É o tipo de turista que não vê além dos muros construídos pelo Museu de Arte Moderna (MAM), que impedem de chegar na comunidade ao lado, a Solar do Unhão, descrita no início dessa matéria. Silas Martí critica, aliás, um local de cultura preta de referência que é a Casa do Benin, dizendo que ela definha. A matéria passou quase despercebida. Nós do Guia Negro questionamos o jornal (via ombudsman, editoria de diversidade e o próprio caderno de Turismo) sobre o registro pouco diverso e nos oferecemos para publicar esse material no impresso, mas ficamos sem resposta.
A Ana Duek, jornalista do Viajar Verde criticou o material em suas redes e lembrou sobre a necessidade de descolonizar o conteúdo e pensamento. “Nossas narrativas e interpretações seguirão carregadas de racismo e preconceito, enquanto nossa mente não se abrir para entender que precisamos desconstruir tudo o que nossa sociedade branca, ocidental, machista, racista e homofóbica nos ensinou”, ressalta. Ela lembra que “há beleza em tantos lugares que nossa cultura racista não nos permite enxergar. Uma escrita ou um texto carregado de arrogância colonizadora não é útil para mais ninguém”.
O fato é que a energia que vibra em Salvador, que atrai turistas e que os faz voltar não são hotéis cinco estrelas que gentrificam seu entorno, mas, sim, a diáspora africana. Uma cidade preta que foi um dos lugares que melhor preservou as riquezas do continente mãe. E é isso que o turismo começa a valorizar e refletir.
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