Em época de COP30, os pretos velhos são fontes de pesquisa territorial

Por Talita Azevedo*

A tradicional festa do Boi Falô, nascida nos arredores da antiga Fazenda Santa Genebra, central na história imperial brasileira, aconteceu em abril, no distrito de Barão Geraldo, em Campinas (SP). É nesse cenário que surge Antoninho, chamado “Toninho”, ex-escravizado que protagoniza a lenda: numa Sexta-feira Santa, teria dito que o boi falou que não era dia de trabalhar. O Barão Geraldo de Rezende, segundo a narrativa, acatou e concedeu descanso à comunidade.

Neste mesmo território, Campinas foi apontada pela Comissão da Verdade da OAB como um dos piores lugares para pessoas escravizadas. Portanto, como imaginar um espaço de diálogo nessa realidade? Nos registros da época, como o livro Um idealista realizador, de Amélia de Rezende – a filha do barão, não há menção à lenda, apenas breves referências a Toninho. Esse silêncio nos leva a refletir: quem foram as figuras que sustentaram a vida espiritual e comunitária da região? Como reorganizar o imaginário coletivo para reconhecê-las?

Os documentos coloniais insistem em retratar ex-escravizados como “fiéis” e “gratos” aos senhores. Amélia escreve, por exemplo: “Choravam, os coitadinhos, de alegria… continuavam ali mesmo, como escravos que eram pelo coração.”

É evidente que a visão romantizada da diáspora apaga trajetórias complexas. Hoje, Antoninho é lembrado anualmente em uma praça do Distrito de nome do Barão com bois coloridos, mas sua presença vai além do folclore: ele se tornou guardião espiritual, com túmulo no Cemitério da Saudade cercado de placas de agradecimento, muitas ligadas a conquistas acadêmicas.

Registros túmulo Antoninho no Cemitério da Saudade I créditos: Talita Azevedo

Essa permanência o aproxima da figura dos Pretos Velhos, guias espirituais da religiosidade afro-brasileira que simbolizam acolhimento e resistência. 

Justiça epistemológica e ancestralidade

Como um cientista pode ser transformado – e resumido – em lenda? A metáfora que nos provoca a pensar as tecnologias de memória, uma perspectiva de reunir a ciclicidade temporal e filosofias africanas sobre comeco, meio e fim, promovendo um futuro em constante contato ao passado no presente: Antoninho foi um guardião de múltiplos saberes, de espiritualidade a botânica, de negociação política à condução ritual, e a complexidade da sua trajetória enquanto indivíduo ainda é resumida para caber no imaginário dominante.

Esse mecanismo pode ser interpretado pelo apagamento histórico: o silenciamento de vozes negras e a transferência de sujeitos a personagens caricatos, como aos nascidos nos anos 2000, como eu, se acostumaram a aprender as rotinas da fazenda acompanhando Tias Anastácias e Barnabés na televisão. 

A ancestralidade africana é berço de conhecimento e tecnologia: da organização comunitária ao manejo de plantas, da oralidade como método pedagógico às filosofias de justiça. No entanto, não basta reverenciar; é preciso estudo, humanização e reconhecimento institucional, do poder público, das universidades e dos espaços de decisão, para integrar essas referências ao patrimônio coletivo.

Por isso, além da figura de Antoninho, alguns nomes para lembrarmos: Marinha, Perpetua, Gertrudes, Antonia (ama de leite da Fazenda), Josefa, Julião, Mamede, Zotico, Oscar, Theophilo, Alfredo, Quiteria, Josefina, Ignez, Brigida, Córa, Braz Caragoatá, Salvador, Napoleão, Sylvestre, Damião, Mariano e André. 

Panelas e a imagem de uma preta velha em Campinas, São Paulo. 

Historicamente, essas mulheres são detentoras de conhecimentos científicos sistematizados no campo da botânica e espiritualidade, conhecidas popularmente como benzedeiras. 

Créditos: registros do livro Um Idealista Realizador, de Amélia Martins de Rezende.

Nomes são símbolos de apagamento

Os nomes, de origens muitas vezes gregos e portugueses, também sugerem o apagamento das verdadeiras identidades dessas pessoas traficadas no movimento transatlântico – retirando sua identidade nominal, liberdade e manifestacoes religiosas em sua complexidade, tendo o sincretismo em movimentos de sao joao como recursos para, potencialmente, também a manifestacao de xangô – um orixá, dividindade africana, que é responsável pela ordem e justiça, regente do ano de 2025. 

As fogueiras, um elemento marcante das festas juninas, simbolizam o fogo tanto para São João quanto para Xangô. A justiça também é uma característica compartilhada, sendo São João um defensor da verdade e Xangô, o rei da justiça.  

É nesse ponto que entra a noção de justiça epistemológica: valorizar saberes historicamente silenciados, reconhecendo sua legitimidade na construção social. A religiosidade afro-católica é um exemplo: Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Campinas, foi sincretizada a Oxum, divindade do amor e da prosperidade. Nos cânticos preservados, a música se torna tecnologia de memória, transmitindo fé e resistência.

“U-ma in-se-len-ca do si-nhô meu deu, que a vir-gem da Con-cei-ção não me de-xe mor-rê sem con-fis-são.” Trecho do livro Um Idealista Realizador – Amelia De Rezende Martins

Valorizar figuras como Antoninho é mais do que reparação simbólica: é reconhecer a ancestralidade como parte viva do patrimônio coletivo. A sabedoria dos Pretos Velhos mostra que os mais velhos não são apenas memória, mas referências para as próximas gerações.

Antoninho I créditos: divulgação

Em paralelo, a COP30, que será sediada em Belém, na Amazônia, representa uma oportunidade histórica para o Brasil demonstrar liderança global em sustentabilidade. Contudo, uma contradição fundamental persiste: por que convidar figuras religiosas europeias em vez de abrir espaço para as matriarcas negras brasileiras, detentoras de tecnologias ancestrais milenares essenciais ao enfrentamento da crise climática?

Arte divulgação. Créditos: Governo Federal

O Brasil tem a maior população negra fora do continente africano

Apesar disso, as contribuições das comunidades afro-brasileiras para a sustentabilidade seguem sistematicamente invisibilizadas, pouco “virais” ou “instagramáveis” diante da cortina das redes sociais.

O que falta para que a gente se reconheça enquanto um território sustentável e economicamente criativo?

Minha preocupação é se não estamos, mais uma vez, reforçando o apagamento histórico estrutural já imposto aos nossos antepassados. A grande oportunidade que temos é valorizar os criadores que remuneram de maneira justa seus colaboradores, evidenciando narrativas enraizadas em seus territórios.

Papa Leao, lider europeu, sera convidado ao evento de sustentabilidade. Fonte: CNN Brasil.

A pergunta que fica: vamos convocar à mesa os representantes regionais do território nacional?

No contexto da COP30, quando o Brasil se apresenta como anfitrião e busca projetar liderança global, há uma oportunidade de afirmar saberes ancestrais como inteligência regional. Incorporar essas vozes ao debate climático e social é ampliar a mesa de diálogo, alinhando ciência, espiritualidade e memória.

O desafio é transformar a lembrança em ação: reescrever nomes de ruas, reorganizar conceitos e reposicionar lugares. A pergunta que fica é se seremos capazes de fazer da memória uma ferramenta de justiça histórica – honrando Antoninho e tantos outros que mantiveram viva a chama da resistência.

*Talita Azevedo é TEDx Speaker, embaixadora do Web Summit no Brasil, Linkedin Top Voice e pesquisadora sobre como tecnologias podem criar acervos à memória afro-brasileira.

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Redação

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