Erica Malunguinho: os bastidores da reintegração de posse na Assembleia Legislativa

Primeira deputada estadual trans de São Paulo leva bloco e movimento negro para posse

Texto: Guilherme Soares Dias/Fotos: Heitor Salatiel

Naquela manhã de 15 de março de 2019, Erica surge sem maquiagem, com cara de preocupada, tentando resolver tudo que ainda falta para chegar à Assembleia Legislativa linda e plena como pretendia. A primeira deputada estadual trans de São Paulo está a alguns dias sem conseguir dormir direito. Malunguinho é do tipo que tem a cabeça ativa e fica vários dias com sono picado. Na noite anterior à posse não foi diferente.

Ao acordar foi resolver as pendências do seu dia histórico. Entre elas, as rosas brancas para fazer um banho com alfazema. Erica ficou deitada na cama com a mãe*, de 74 anos, que veio de Paulista (PE) para ver a posse. As duas ficaram conversando e a filha acalmava o coração aflito da mãe. Nos pensamentos da deputada não saía a imagem do amigo, parceiro de vida e de luta Fernando Brandão, que faleceu no mês passado e que estaria com ela nesse dia da posse. “Não fiz grandes coisas. Tomei um banho e normal”, resumia.

É interessante que mesmo em sua casa e tentando entender melhor quem é Erica no dia a dia é difícil acessar o seu íntimo. Uma defesa que ela sabe bem usar. Quando o assunto é política, ela fica mais à vontade. Eleita pelo PSOL em sua primeira eleição com 55 mil votos, a mestra em estética e história da arte pela USP e criadora da Aparelha Luzia, um quilombo urbano, espaço para fomentar produções artísticas e intelectuais na capital paulista, diz que sabe de sua responsabilidade e do quanto esse dia foi esperado. “É uma participação dentro de uma longa história. Estou participando como muitas de nós, que foram criando bases, estruturas para que eu pudesse estar aqui nesse momento. Eu sinto essa ancestralidade pulsando na minha existência. Ancestralidade não como tempo passado, mas como passado, presente, futuro, como tempo perene”, afirma.

Erica destaca a rede de afeto, de amor, de vínculo, cuidado e proteção formada por mulheres negras e homens negros que a elegeram, mas que também são suas referências. “Sinto Dandara, Zumbi, Akotirene, Aqualtune, Ganga Zumba, Teresa de Benguela, nossas contemporâneas Sueli Carneiro, Cida Bento. É muita gente pulsando, gente jovem como Djamila, Joice, Amanda, Juliana, Sandra…”, cita.

O apartamento de Erica na região central de São Paulo é daqueles antigos, com piso de madeira, dois quartos e uma decoração que remete a algo como “casa de vó”. Há palha, madeira, barro… Os objetos espalhados, no entanto, denunciam que ali mora uma militante do movimento negro. Na mesa de centro, o livro em cima de uma pilha é “Dialética radical do Brasil negro”, de Clóvis Moura. Um quadro de Ângela Davis estampa as palavras power e equality (poder e equidade). Pela sala, estão dispostos ainda “O que é lugar de fala”, de Djamila Ribeiro, uma revista Cult que traz Marielle Franco na capa e um quadro que remete ao Egito antigo.

Um pequeno som toca o CD de Luedji Luna, cantora baiana que fortaleceu seu trabalho e começou a formar seu público paulistano na Aparelha Luzia. Malunguinho comemorava o fato da rainha da República Democrática do Congo, Diambi Kabatusuila Mukalenga Mukaji de Nkashama, que estava em visita ao Brasil, ter prometido ir na posse. “A gente se amou. Ela vai embora hoje, mas está fazendo o possível para passar lá”, disse. A realeza acabou não conseguindo ir, mas a promessa já tinha alegrado a deputada. “É a justiça de devolver todo nosso poder”. Figuras históricas do movimento negro como Sueli Carneiro não foram convidadas para a posse por conta do improviso que é a cerimônia. Poucas pessoas têm acesso ao plenário e a maior parte fica nos saguões e salas assistindo por telões, de maneira “insalubre”, como classifica.

Orgulhosa, a mãe foi maquiada e ganhou um batom ameixa, sua cor predileta. “Mainha, tá confortável?”, preocupava-se Erica enquanto ela recebia retoques no rosto em cima de uma banqueta. “Estou muito feliz. É um grande dia, esperado”, repetia ela, um pouco tímida e outro tanto orgulhosa da filha.

E afinal, que história Erica quer contar a partir de agora? “Não é algo novo. Ela já está acontecida, muito antes da primeira diáspora. É uma história que remonta a ancestralidade africana, a ancestralidade indígena e diz respeito também aos processos de luta e resistência, quando aconteceram as diásporas, a escravidão e o extermínio de parte do povo indígena. A história que a gente vai contar é a partir desse lugar. Isso significa dizer que a gente compreendeu essa história, sistematizou tudo isso, pensando em luta, resistência e em como será o amanhã”, afirma.

E a Erica criança sonhou com esse dia? Ela diz que o tema política sempre esteve presente em sua casa. A mãe era afilhada de Francisco Julião, um dos líderes da liga campesina. A avó ficou dias na porta da delegacia quando Miguel Arraes ficou preso. Quando ocorreram as primeiras eleições diretas para presidente e Lula e Collor disputavam a presidência, ela organizou as próprias eleições. Pegou uma caixa de sapato, fez células, colocou um dos amigos como Collor e outro como Lula e saiu fazendo eleição na rua. Na eleição de Erica, Lula venceu em 1989.

Já na adolescência, a hoje deputada juntava a turma para falar sobre eleição, sobre o voto. “Essa participação nunca foi apartada da minha vida. Não é que eu imaginava, ou projetava, mas nunca foi distante”, considera. Mas quando se tornou adulta imaginou que entrar para política pudesse ser um caminho. “Eu sonhava e sonho em buscar meios para ajudar e reverter essa história de dor e violência. Isso era um norte na minha vida. Pensar sobre os outros. Se eu não tenho, os outros têm menos ainda”, considera.

Uma das histórias que ajudam a ilustrar isso vem de quando Erica estava na quinta série em uma escola pública, de boa qualidade de Pernambuco. Quando percebeu que alguns estudantes não possuíam material, ela foi para turma seguinte e recolheu vários livros para distribuir para quem não tinha. “Isso é uma prática. E isso não vem de mim. É construída familiarmente. Minha mãe foi a única dos irmãos escolhida para estudar. Ela tinha a responsabilidade de redistribuir isso. A política faz parte dessa necessidade anterior de reverter as estruturas da sociedade. Agora é na política, antes era na Aparelha, e antes ainda era como educadora”, ressalta.

A morte de Marielle Franco, a vereadora do Rio, negra e lésbica que pautava os direitos humanos, e a renúncia do deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ), também LGBT e defensor dos direitos humanos, que resolveu sair do país após ameaças de morte fazem com que Erica tenha medo? “Eu lido com o histórico de Marielle Franco, de Jean Willys, do genocídio da população negra, do feminicídio, da transfobia e da escravidão desde que nasci. Você pergunta se eu tenho medo? Eu digo: viver é perigoso para quem não está dentro da normatividade. Sempre foi perigoso para a juventude negra, para a mulher, para o LGBT… Nós aprendemos a viver com essa realidade”, diz.

Ela afirma que foi capacitada a se cuidar e se defender desde cedo. “Toda mãe preta sempre ensinou toda criança a não sair sem documento de casa. Toda minha educação que me foi dada pela minha família para permanecer viva e presente nessa cidade violenta, racista e misógina. Eu me cuido. Estou presente. A palavra não é medo, é resistência”, conclui.

Quando sugerem acender a luz para melhorar a qualidade do vídeo, uma das lâmpadas não liga. Erica pede para sacarem uma espada de São Jorge e cutucá-la. O truque funciona e a lâmpada finalmente acende. Na cozinha, alguns lanches e azulejos antigos. No banheiro, desenhos e pétalas de rosa do banho que a deputada tomou mais cedo. Ela desce e fuma um cigarro. É seu momento de alívio. Na calçada, os vizinhos a reconhecem e pedem para tirar fotos. Todos são atendidos com simpatia.

Ao chegar em frente ao Ginásio Ibirapuera é recebida pelo cortejo do Ilu Inã, bloco afirmativo. Com todos vestidos de branco e acompanhados por militantes do movimento negro, o bloco anuncia o barulho que a nova deputada pretende fazer na casa de lei. Faixas dizem “Mestre Môa, presente”, “mulheres trans vivas”, “genocídio da juventude negra”. Tambores, chocalhos, agogô e instrumentos de sopro acompanham Erica até a Assembleia. Ela segue o cortejo ladeada pelo irmão e pela mãe. É o que ela chamou de reintegração de posse, com a retomada do poder que sempre deveria ter sido dos negros.

Em frente à Assembleia, faz um discurso em que pede alternância de poder. “Tem que ter gente preta nas cadeiras, decidindo, o que será melhor. Nosso pacto é estar junto com quem tiver esse compromisso. Vamos entrar pela porta da frente”, avisa. E repete a palavra: “Pretaaa”. Na sequência, lembra: “É tudo nosso, primeiro nóis e depois é nóis de novo (sic)”.

A deputada entra no plenário e os militantes que a acompanham ficam no hall monumental, onde dividem espaço com membros de uma ala jovem do PSL. A sessão começa.  Cada um dos 94 deputados eleitos por São Paulo é chamado para dizer “Assim o prometo”. As “torcidas organizadas” de cada um estão a postos. Os correligionários do PSL são barulhentos, mas a esquerda também tinha sua torcida que gritava palavras de ordem como “Lula, livre”. Na hora de fazer a promessa, os deputados acrescentavam frases como “Por Deus, Pelo Brasil acima de tudo, pela família, pelo povo de Marília…”.

O crescimento dessa nova direita, segundo Malunguinho, não brotou do nada. Assim como ela considera que seus passos vêm de longe, lembra que as narrativas que constroem o conservadorismo também se dão em um processo histórico. “Essa bancada conservadora representada pelos deputades do PSL não é algo novo. O partido é novo. Mas eles estavam aí. São agentes da sociedade que estavam alimentando o conservadorismo em seus lugares de atuação. Se não era o PSL, eram outros.  O fato é que temos um estado, um poder político, institucional, que não tem compromisso com o rompimento das violências e das desigualdades. Isso não é de agora. O que nós vamos fazer é uma desconstrução dessas violências estruturais que estão desde muito antes”, promete.

Enquanto o conservadorismo aumenta de um lado, a primeira deputada trans de São Paulo pode ser vista como uma resposta, um contra-conservadorismo, ou o “contra-golpe black, trans, paranauê”, como ela prefere definir. “São forças opostas, que estão em construção, em debate. Isso não diz respeito a mim unicamente, mas a um conjunto de pessoas que estão conosco”.

Ela não considera a eleição de Jair Bolsonaro como apocalíptica, mas sim como reveladora. “As máscaras caem e a sociedade poderá finalmente fazer suas escolhas. Estamos vendo o que resulta um comandante extremamente violento, que faz apologia de armas, que tem um discurso de segurança pública, que visa a repressão, extremamente repressivo, homofóbico, machista”, diz.

Erica foi fazer o juramento enquanto os gritos de “Olê, olê, Lula”, estavam mais fortes num dos plenários. Ela também não ergueu o microfone e pouco deu para ouvir o que disse. No gabinete, os assessores também não conseguiram ouvir tudo. A estrutura da Assembleia parece não dar conta do dia da posse. Depois ela contou que falou: “pela liberdade, pela democracia”. E emenda: “Eu pensei muito no que ia dizer e acabei falando algo que não queria tanto”. A frase foi parecida com a que ela disse quando acabou a entrevista com uma das repórteres que a acompanhava. “Já? Eu sempre acho que eu não falei o que deveria”. Afinal, ser a primeira deputada trans e intimamente ligada ao movimento negro dá a ela a responsabilidade de ser voz única em várias pautas que não são sequer consideradas naquele espaço e agora precisarão ser debatidas.

Com vestido branco, capa brilhante, acessórios de búzios e os dreds em trança nagô, presos em arame num grande rabo de cavalo, Erica desfila no plenário. Ela é chamada maldosamente pelos fotógrafos da grande imprensa de Iemanjá. Mal sabem eles que para ela isso seria elogio.

A eleição da presidência não surpreende, e Cauê Macris (PSDB), aliado do governador João Dória (PSDB), é reeleito deixando uma Janaína Paschoal (PSL) enlouquecida. A deputada, que ganhou notoriedade no processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), solta a frase que melhor resume aquela eleição. “Não tem preço o PT brigando pelo PSDB”. O jogo político não permitiu que os novatos tivessem vez. Nem mesmo com o PSL agora tendo a maior bancada. Uma confusão chegou a esquentar o clima. Em pé, os deputados pareciam que iam sair no soco. Sentada, Erica se abanava com seu leque assistindo à cena patética de camorote, vip, diga-se de passagem.

Antes do fim da eleição do restante dos membros da mesa diretora, a deputada passou em uma sala do subterrâneo servida com comida e pode saciar um pouco da fome. Ela volta ao gabinete, onde agora estão os que foram ali para vê-la em seu primeiro dia de deputada. Ela se impressiona com o tamanho da mesa, do computador. Comento que tem porte de “mesa de chefe”. A referência dela é outra: “é mesa de terapia”. O look ganhou agora um broche com um brasão que diz “deputada estadual”. Ela exibe para os presentes no gabinete, onde todos são negros. A deputada pergunta se a mãe ficou preocupada com as brigas, enquanto confere como é a sala que passará a ocupar nos próximos dias.

A primeira impressão que teve foi a confirmação de um arquétipo ruim da classe política, que rompe com esse pressuposto do estado laico, já que há uma imagem enorme de Jesus Cristo atrás do plenário. “Essa imagem não deveria estar lá. As pessoas têm o direito de professar sua fé desde que não seja institucionalizado. O estado não é laico”, conclui.  A deputada lembra, no entanto, que rolaram muitos olhares, alguns de reprovação, mas muitos de acolhimento e de respeito. “Estou dentro, me sinto dentro e estou entendendo como é esse lugar”, afirma.

Um dos deputados abordou Erica e disse que seu cabelo parecia com um dos personagens do filme “Quinto Elemento”. Ela respondeu que ele devia ter faltado à aula de história. “Onde ele aprendeu que um penteado de origem senegalesa tinha como referência um filme de Hollywood? Respondi: Temos que estudar história, viu, querido?, mas foi na maior generosidade, de forma divertida. Tem muitas coisas a serem ditas. Eu sinto que tem muito trabalho pela frente”, considera. E se ela pudesse falar uma frase ali naquele lugar que todo mundo pudesse ouvi-la, qual seria? Sanidade acima de tudo e liberdade acima de todos. A expectativa é que ela possa ser ouvida.

Esse foi só primeiro de muitos dias de Malunguinho como deputada, mas será que ela pretende fazer carreira na política? “Eu assumi uma responsabilidade e estarei com ela até o tempo que for necessário para as pessoas. Se elas estiverem juntas nesse projeto político e pedagógico e acreditem que ele é um caminho necessário e viável, a gente permanece. Meu corpo, minha existência, minha intelectualidade, estão à disposição para esse lugar”, afirma.

O dia terminou com uma comemoração no Aparelha Luzia, o espaço criado por Erica e que é referência como ponto de encontro, espaço cultural e de resistência da população negra de São Paulo. “Celebramos essa vitória emblemática, que mostra a transgressão total do sistema e da ordem estabelecida nesses anos de Assembleia Legislativa de São Paulo. O quilombo está em movimento. Nos movimentamos quilombisticamente. O corpo negro vivo e consciente é um quilombo negro ativo”, afirma.

Durante a noite, Érica Azeviche entoou cantos de matrizes africanas, enquanto Malunguinho fez uma performance em alusão aos orixás e a líderes históricos do movimento negro. “A Aparelha Luzia é um lugar de sociabilidade preta, onde podemos nos amar, nos aproximar, nos afrocentrar. Afrocentro é o epicentro”, bradou a deputada em sua performance. A casa estava cheia e o clima era de celebração. “Nós fazemos quilombo onde estivermos. E, com certeza, temos que retornar para o contemporâneo último útero que é a Aparelha”, afirma.

“Habemus deputada”, solta, no meio da performance. O público vai ao delírio. Erica fala ainda de oposições propositivas, citando Capulanas, Os Crespos e os próprios corpos negros vivos. Ela fez uma chamada com figuras negras que foram mortas como Mateusa, Marielle, Amarildo e Mestre Môa, seguida de gritos de “presente”. E avisa: “Se matar nós, nós dá o troco (sic)”.

Nos dias que se seguem, a mulher de 37 anos pretende ter como aliados os deputados do PSOL e de bancadas progressistas do PT e do PCdoB, como Leci Brandão. Nessa política de conhecer o novo território, ela visita o gabinete vizinho, da bancada ativista do PSOL que elegeu nove deputados para o mesmo mandato. Um modelo novo na política brasileira e ainda não consolidado, o que faz com que só um dos deputados possa frequentar o plenário, ficando essa incumbência com Mônica Seixas. Uma das nove deputadas é a estudante de gerontologia Érika Hilton, que também é trans.

As Ericas se encontram, riem, falam dos seus visuais “faz três dias que estou me montando. E eu amei esse cabelo”, diz Malunguinho sobre o novo visual chanel de Hilton, que comenta da importância de estarem naquele espaço: “A gente não queria estar aqui, mas se fez necessário”. E a parideira do Aparelha Luzia conclui: “Vamos começar nosso projeto político pedagógico”.

*o nome foi omitido a pedido da equipe da deputada

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Redação

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