Porque estátuas de escravocratas e homenagens a opressores devem sumir do mapa

Arte: Alma Preta

A derrubada de estátuas e monumentos que homenageiam figuras com passado escravocrata ou opressores tornou-se realidade em diferentes países, mas ainda engatinha no Brasil. Entre aqueles que se opõem à retirada dessas “cicatrizes” no ambiente urbano está o de “apagar” a história. “A recontextualização dessas estátuas não muda o passado, mas seu deslocamento informa o que já não se pode mais tolerar se almejamos, de fato, um espaço comum mais democrático, capaz de abarcar memórias plurais e de reparar as histórias jogadas para baixo do tapete da história”, afirma o antropólogo e curador de arte Hélio Meneses.

Para ele, os defensores de borba gatos e afins não querem ver essas estátuas retiradas e se colocam a enxergar “valores artísticos e históricos” onde (quase) não há porque retirar essas imagens reacende o debate sobre a história oficial, as histórias não-contadas e as memórias apagadas. “Quem não contou essas histórias? Por que não as fez, nem as faz? Quais mecanismos do saber atuam para apagar essas memórias? A retirada também joga luz sobre as práticas de racismo hoje, nos convida a refletir sobre a quem pertence o espaço público, que figuras devem lá figurar (se é que alguma deve), que demais opiniões importam nesse debate antes reservado aos ‘especialistas’”, escreve em publicação na sua rede social.

A retirada das estátuas, segundo Menezes, deixa à mostra a conivência de (alguns) historiadores, antropólogos, curadores, artistas, diretores de museus e cúmplices em geral do epistemicídio (destruição de formas de conhecimento e culturas que não são assimiladas pela cultura do Ocidente branco) com a manutenção e reatualização de violências coloniais sob a desculpa “da bela forma das belas artes”, somente. “Por omissão ou compromisso, que tipo de conhecimento tem servido a legitimar que se mantenham de pé essas violências em forma de monumento?”, questiona.

O antropólogo continua ressaltando que “uma estátua retirada abre espaço – literal e metafórico – à imediata pergunta do que lhe tomará o lugar”. “Refiro-me não ao lugar físico, apenas, que talvez nem deva ser substituído por monumento algum: mas a que novos personagens, novos olhares, conhecimentos, intérpretes, novos artistas, curadores, diretores, devem lhe tomar o pedestal, devem destruir os pedestais? Ao se retirar o monumento racista, se retira a autoridade discursiva dos que se dizem dele especialistas. Retira-se também a máscara de quem os defende – não nos enganemos – porque estão querendo defender é a si mesmos. E a seus próprios pedestais”, conclui.

Em outro texto, Menezes afirma: “Monumentos nem sempre são salvaguardas da história. Eles dizem mais respeito à mentalidade do contexto de suas criações, às negociações políticas e do direito à memória, que à missão de substitutos do ofício próprio dos historiadores. Sua natureza estática, contrária ao dinamismo dos processos sociais, pode gerar o efeito contrário, congelando no espaço representações de personagens e eventos que o acúmulo de pesquisas históricas, com o tempo, descreditaram como falsas, impróprias.”

O antropólogo questiona: “Quando toleramos a perpetuação de imagens de colonizadores, escravistas e bandidos em geral em nossas vias, é sinal que esses espaços não são tão públicos assim; é indício forte de que privilegiamos a memória de alguns personagens em detrimento de outros. E qualquer transeunte sabe que os homenageados têm sido monotonamente escolhidos de um repertório de homens brancos, muitas vezes fardados, com o peso de biografias imorais em suas costas”.

Silvio Almeida, doutor em Filosofia e teoria do direito pela USP, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e da Universidade Mackenzie, e presidente da Fundação Luiz Gama, defende a derrubada de homenagens a opressores. “Monumento é a memória que tem que ser preservada para o futuro. Algumas estátuas marcam derrotas (do povo negro) e são continuidades da escravidão. O espaço público tem que ser reconfigurado. Retirar estátua é ato político. Tem que reconfigurar o imaginário popular”, defendeu em participação no programa Roda Viva, da TV Cultura.

Almeida rebateu a tese de quem diz que a retirada é uma tentativa de mudar a história. “Revisionismo histórico é não querer que o fluxo da história siga seu rumo. Tem gente que chora por estatua, mas não chora quando morre um negro”, pontou.

Estética duvidosa

No caso de São Paulo, uma das estátuas mais emblemáticas de homenagem aos bandeirantes: a de Borba Gato, que fica em Santo Amaro, na região sul, carrega ainda um outro problema. “Fato: a estátua de Borba Gato é mais feia do que Satanás chupando uma fruta-do-conde. Poucas coisas diminuiriam mais a FIB (Feiura Interna Bruta) de Santo Amaro do que uma discreta remoção da estátua e sua substituição por, sei lá, uma muda de ipê-amarelo”, como lembra o jornalista Reinaldo José Lopes, em artigo na Folha de S. Paulo.

Lopes destaca que mais do que botar abaixo o Borba Gato, o que falta é o conhecimento detalhado do que os “heroicos paulistas” realmente representaram. “A Coroa portuguesa tinha estabelecido regras bastante estritas quanto à principal (e, durante muito tempo, a única) atividade dos bandeirantes, o apresamento dos ‘gentios da terra’ – ou a escravização de indígenas”, que era ilegal época.

Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e ex-vereador de São Paulo ressalta que há “dificuldade de romper com a história oficial de São Paulo, construída sobre uma farsa, solidamente fincada no ideário dominante paulista”. “A exaltação dos bandeirantes é profunda e está presente em um variado espectro de elementos materiais e imateriais que fazem parte do cotidiano de São Paulo. Sua presença vai muito além da simbólica estátua fantasiosa de um Borba Gato, majestoso, de botas e uniformizado como um soldado prussiano, que nunca existiu”, escreve em texto na Folha de S. Paulo.

O urbanista lembra que as homenagens aos bandeirantes estão em todos os lugares e cita: “Bandeirantes, Anhanguera, Raposo Tavares, Fernão Dias, Paes Leme, Borba Gato, Jorge Velho, Mateus Grou, Simão Alvares, Cunha Gago, Brás Leme, entre tantos outros, são ao mesmo tempo rodovias, ruas, avenidas, bairros e monumentos, casas históricas. Muitos são anônimos, ninguém sabe quem são, o que fizeram e por que estão sendo homenageados”.

Para Bonduki, mais do que derrubar estátuas, seria necessário desconstruir mitos e uma visão distorcida da história que está na origem da homenagem a esses genocidas. “Já foi amplamente demostrado que a figura heroica do bandeirante nunca existiu tal como expresso em monumentos e relatos ufanistas. Sua principal atividade foi matar e caçar índios, aprisioná-los e vendê-los como escravos”, ressalta.

O ex-vereador sugere transformar as inúmeras casas bandeiristas, que fazem parte do Museu da Cidade da Secretaria de Cultura, em locais onde se resgata a história dos colonizadores paulistas, problematizando tanto as atrocidades que cometeram como sua eventual contribuição. “Estatuas como o Borba Gato poderiam ser deslocadas para essas casas, contextualizadas adequadamente” e também propõe no lugar de Borba Gato seja construído um monumento de igual tamanho em homenagem ao povo guarani, que foi massacrado pelos bandeirantes nas missões.

Inglaterra

Uma estátua, projetada por John Cassidy, foi erguida no centro de Bristol, na Inglaterra, em 1895 para comemorar a filantropia de Edward Colston. Ele é uma figura controversa, vista por alguns como uma figura inspiradora para a cidade, devido a suas doações de dinheiro para escolas e outras causas, mas também um grande comerciante de escravos.

Em 7 de junho de 2020, a estátua foi derrubada e jogada no porto de Bristol por manifestantes que apoiavam o Black Lives Matter que se reuniram para protestar contra a morte de George Floyd. O historiador e apresentador de televisão David Olusoga comentou que a estátua deveria ter sido retirada mais cedo, dizendo: “A estátua dizia ‘este foi um grande homem que fez grandes coisas’. Isso não é verdade, ele [Colston] era um comerciante de escravos e um assassino”.

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Redação

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