Viajar é uma experiência diferente para cada pessoa. Uma mulher passa por situações distintas da de um homem, assim como um jovem viaja de um jeito e o idoso de outro. O mochileiro vive coisas que quem viaja na categoria luxo jamais saberá como é e vice-e-versa. A afirmação também é válida para pessoas com deficiência, LGBTs e negros. Sim, o que significa viajar para uma pessoa branca e para uma pessoa negra é distinto. O Guia Negro pretende justamente ser um espaço de incentivo para que mais pessoas de cor preta ou parda possam circular pelo mundo, assim como os brancos fazem com tanta naturalidade.
Enquanto para nós viagens longas, período sabático ou nomadismo digital parecem coisas distantes por razões econômicas, de acesso, de oportunidade, de não achar que é para si e outras “n” razões, para as pessoas brancas esse é um processo dado. Eles vêm fazendo isso de forma natural há anos. Tanto que viajar se tornou uma espécie de mercadoria, como bem definiu a jornalista Kivia Mendonça, que viajou por três anos por 70 países.
Ela é branca e ia de carona, ficava na casa das pessoas, contava histórias reais sobre o viajar e era zero instagrammer, tanto que só entrou na rede tempos depois. Kivia tinha uma página no Facebook, na qual dividia suas experiências. Ela era a pessoa que escrevia sobre viagens que mais me inspirava quando decidi mochilar. Ela era amiga de uma amiga e chegamos a conversar numa espécie de consultoria mochileira. Não pude viajar como ela. Pois, como homem negro não conseguia hospedagem pelo Couchsurfing na Europa, nem carona. Mas, como homem, eu também não sou assediado (sexualmente) como ela é só por estar em um lugar com uma roupa mais à vontade.
Mesmo tendo experiência diferente, a identificação com as viagens reais descritas por ela só cresceu ao longo da minha própria jornada viajante. Em dado momento, a Kivia decidiu dar uma pausa nas viagens e em 2016 também sair do Facebook, onde postava os seus relatos e tinha 16 mil seguidores. Ela escreveu uma espécie de tratado do que é ser viajante. É um recado mais para a branquitude do que para as pessoas negras, mas acho importante reproduzir aqui para que nenhum de nós caia nessa armadilha do “viajar-mercadoria”.
CONFIRA O RELATO:
Viajar é uma faca de dois gumes. Bom ou nefasto; puro ou malicioso; belo ou mesquinho. Há algo de extremamente libertador, humano e mesmo espiritual em fazer as malas e cair no mundo, principalmente no mundo que é muito diferente de nós. É o que eu, de certa forma, quero fazer pelo resto da vida. Há algo de egoísta, arrogante e alienante em fazer as malas e cair no mundo, sobretudo quando não estamos genuinamente dispostos a nos integrar ao mundo para o qual partimos. É o que eu gostaria de evitar e de não incentivar pelo resto da vida.
Antes de dissecar os argumentos acima, deixe-me abrir um parênteses sobre viagem como commodity. Viagem virou mercadoria, coisa que você compra e possui. Que você compra e exibe para os amigos (digo, pessoas que quer impressionar), tal qual carro, casa, roupa etc. Viagem é uma commodity e uma commodity em alta, agora que todos podem ver o quão você está se divertindo na praia, através das redes sociais. O cruzeiro Mediterrâneo ou o retiro espiritual na Índia são quase palpáveis e contam preciosos pontos na escadinha social.
Some a isso o fato de que viagem ainda é vista e vendida como commodity de luxo, um legítimo bem de Veblen: quanto maior o preço, maior a sensação de exclusividade, maior a demanda (entre os que querem impressionar). Isso de que você precisa de ser rico para viajar não é só mito. É mais uma recompensa que mantém esse sistema meritocrático patético funcionando. As pessoas precisam acreditar que têm que esfolar o couro no trabalho (muitas vezes engolindo sapos, adoecendo e fazendo atividades contra seus princípios), para ganhar dinheiro e só então viajar. Imaginem se todos se convencerem de que é possível viajar e curtir a vida pulando a parte do ficar rico. Puft!
Nossos contemporâneos mochileiros, visitadores de albergues e caroneiros de BR, já sabem disso e estão espalhando a palavra por ai, em centenas de blogues de viagem. Inspirando toda uma geração a viajar, sem o tabu da conta bancária, de ser mulher, gay, inspirando toda uma geração a “fazer” Petra e a Chapada dos Guimarães, a usar bem uma câmera de celular e uma GoPro, a criar um blog ou Insta onde postar essas fotos e vídeos … Formando, paradoxalmente, uma geração de viajantes alienados, arrogantes e individualistas.
Muitas, inúmeras, incontáveis vezes eu me senti incentivando exatamente isso com este blog. Por tempos, essa era apenas uma sensação estranha, coexistindo com a ideia de inspirar mulheres, latinos, humildes. Até perceber, por comentários e mensagens, que o impacto que horas de edição e de narrativas escreve-apaga não estavam, essencialmente, munindo de ferramentas de transformação os grupos que eu queria atingir, mas deixando dois efeitos colaterais indesejados: trabalhar (de graça) para que mais pessoas já privilegiadas (amigos inclusos) pudessem economizar e consumir um número maior de viagens-commodities; alimentar, nas entrelinhas dessas fotos tentadoras, o mito de que quem não viaja não aproveita a vida e é incapaz de entender as vicissitudes do mundo e de aqueles que viajam são seres iluminados, heróis de epopeias, fodas pra caralho.
Puta mentira do caralho! Ariano Suassuna viveu quase 90 anos, nunca deixou o Brasil, e tenho certeza que ele entendeu as coisas da vida e do mundo melhor do que eu que conheço 70 países. Acho que pelo menos 80% dos mochileiros que conheci eram cidadãos de países ricos (que ficam automaticamente ricos em territórios pobres) ou elite de países periféricos, contando “aventuras” do tipo meu ônibus quebrou e transei no quarto do hostel. Quantas vezes não chegaram pra mim (homens, na maioria) tipo “nossa, você viaja de carona, que legal, posso ir junto?” e desistiram na primeira semana ou antes de começar? Na boa, quer história foda de superação e coragem? Senta pra ouvir seus pais, seus avós, galera que foi torturada na ditadura pra gente ter o direito de escrever o que der na telha nos nossos blogues, que escapou da seca a pé com filho no lombo, que cruzou o Atlântico num navio socado de gente e doença com a promessa de trabalho semi-compulsório numa fazenda de café. Tenho certeza que terão histórias muito mais fodas do que os filmes e textões de viagem que pulam na sua tela. Vamos parar de glamorizar o que (nos) acontece no exterior, por favor.
Sei que posso soar um tanto ranzinza, que as reflexões e registros da sua viagem, sejam quais forem, são muito importantes para você mesmo e devem ser feitos. Mas eu enxergo (e já faz tempo) uma síndrome de superioridade bizarra crescendo entre viajantes de carteirinha que beira a pandemia. Teve aventureiro-caroneiro chegando pra mim e falando “o mundo se divide entre os que viajam e os que não viajam e vivem uma vida chata; ainda bem que pertencemos aos primeiros!” Gente, ei, isso é fascismo! Seria uma irresponsabilidade minha não falar disso e, na omissão, incentivar que o vírus do super-heroísmo se espalhe.
As revistas de viagem (campeãs de anunciantes) historicamente venderam o viajar como a vida que todo mundo deseja, plantando ilusões que são reproduzidas pela maioria dos blogueiros de viagem que eu conheço, mesmo os mais roots, que se regozijam em ser protagonistas de histórias que todo mundo quer viver. Você quer mesmo ou semearam essa ideia na sua cabeça? Dois exemplos para reflexão.
Na Ásia, conheci uma simpática canadense em um ônibus noturno. Fizemos amizade, dividimos o mesmo quartinho de hotel. Era uma cidade carregada de história. Ela também era bem viajada, mas não parecia interessada em explorar o lugar, ficava no quarto, voltava mais cedo. Fui tentando entender o que acontecia, até que numa noite ela desabou em lágrimas e desabafou “eu não queria estar aqui … quero dizer, sim, eu queria muito voltar a este país, mas a minha avó está muito doente, eu só consigo pensar que eu não fiquei em casa com ela … não estou com vontade de fazer nada! O que eu faço?” Abracei-a e disse que não era obrigada a nada, for God’s sake!
Na Europa, conheci um cara que, a princípio, me despertou desconfiança. Falava rápido, sempre de si, mudava de assunto o tempo todo e de interlocutor (éramos um grupo). Pouco mais velho que eu, disse que viajava há dez anos, mostrava fotos com celebridades, selfies audaciosas. Comentei o caso com uma amiga que já o conhecia de anos. Ela explicou que ele era bastante conhecido em seu país de origem como produtor de conteúdo de viagem, tinha participado de programas de TV etc, mas, na real, já não se divertia como antes, não via mais sentido nessa vida e não sabia como sair dela. “Ele é legal, mas realmente não está bem”, comentou. Olha que foda isso … De repente você está na “vida dos sonhos”, ela está vazia, mas você se sente compelido a ficar lá, porque é onde todos querem estar – dizem querer estar …
Há algo de extremamente libertador, humano e mesmo espiritual em fazer as malas e cair no mundo. Espero poder fazer isso pelo resto da vida. Poder subir e descer as pirâmides da América Central para descobrir as nuances da arquitetura maia. Poder fazer uma trilha extenuante para espantar os medos, pular numa cachoeira cristalina para descarregar a ansiedade, quando ela sufocar. Poder passar 40 dias no deserto do Saara, Namíbia ou Atacama, no dia que a vida pedir uma mudança de rumos. Espero poder continuar a dormir em favelas e mansões, arranha-céus e casebres de barro, enfiar-me em tudo que é espaço para entender como o outro vive e para descobrir, por contraste de encaixes, meu real tamanho. Espero continuar fazendo amigos e colecionando uns causos para contar na hora da janta.
Espero que você também tenha a oportunidade/coragem de fazer isso, e o entendimento de que viajar é muito, muito mais do que tirar uma foto na frente do Big Bang pro coleguinha esnobe do trabalho pensar que você consome cultura. E que você possa viajar apenas se (e quando) isso genuinamente fizer sentido para você;
*Kivia Mendonça é jornalista, autora do livro Diários Marroquinos e está no Instagram como @kiviagem
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