A cantora paulistana Jup do Bairro, 27 anos, lançou neste 31 de agosto o videoclipe da música “Luta por Mim”, parceria com o rapper Mulambo, em que profetiza a vida, principalmente, de pessoas negras e trans. Em dezembro, Jup lançou o primeiro EP chamado “Corpo Sem Juízo”, que traz sete faixas sobre as três fases básicas do corpo: nascimento, vida e morte. “Quis evidenciar minhas dores e delícias e principalmente mexer minhas feridas. É um EP de criação de imaginário. Só eu e meu corpo poderiam produzi-lo”, defende.
Ela diz que a recepção do público e da crítica a tocam e que se incomoda quando querem colocá-la como pioneira do queer rap, da primeira travesti do rap. “Acho perigoso quando assume isso. Acaba invisibilizando o trabalho das pessoas. Não queria saber quem foi a primeira. O que mais quero é não ser a ultima”, pede. O clipe de “Luta por Mim” é a quarta e última parte do EP que foi fragmentado em outras faixas. “Ainda não conseguimos falar de futuro da pretitude e da população trans por conta de homicídio. A vivência da nossa família é completamente imediatista. A qualquer momento estamos diante da morte, que é uma aliada forte”, explica.
Jup escreve sobre as dores que o sistema causa e profetiza a vida. “O nosso luto é viralizado. Então, fazemos é protização do ‘eu não vou morrer’.”, detalha. A cantora acredita que faz parte do seu trabalho colocar em pauta falas desconfortáveis e doloridas. “Sempre colocam as pautas de racismo para pessoas negras e as de transfobia para pessoas trans. Meu local de fala não significa o seu local de silêncio. Pessoas brancas precisam falar de racismo e pessoas cis precisam falar de transfobia”, avalia.
A artista critica os recentes movimentos em que pessoas brancas convidaram pessoas negras para falar sobre racismo ocupando suas redes sociais. “É uma estratégia muito massa. Na verdade, havia uma grandee responsabilidade em colocar pessoas pretas para falar de suas dores. O público que realmente será atingido não vai ligar para essa pessoa preta. É uma mostra de como a branquitude gosta de se esquivar e ocupar esse papel do não errante, de Princesa Isabel, de ‘dar voz’.”, contesta.
Jup considera que episódios como esse mostram que o racismo vai se sofisticando. “Cultura e tradições são como um ciclo em espiral, não se repetem da mesma maneira. A LGBTfobia e o racismo vêm se sofisticando de maneira quase imperceptível”, afirma. “Cansei de fazer palestras em instituições em que perguntava quantas pessoas trans trabalhavam naquele ambiente. As pessoas iam ao delírio. É meio malicioso nos colocar nesse lugar da histeria. Quando olha a acessibilidade desses corpos”, complementa.
A mãe de Jup, Dona Sueli, fez parte do clipe novo. “Fiquei feliz e emocionada. Ela é uma mulher guerreira, representação preta e signo feminino. Sou minha mãe. Ela tem voz grave também, quando ligam pra falar com ela acham que sou eu e vice-e-versa”, conta. Sueli, que é costureira, é uma inspiração para a cantora. “Com a perda do meu pai, percebi que as mulheres pretas a meu redor são pertencentes a alguém, a um homem. Minha mãe deu uma rasteira nisso, criando seus filhos com garra”, orgulha-se.
Jup se define como uma grande contradição e diz que não sabe o que vai fazer com o corpo ou mesmo com quem é. “Sou matéria de entrega ao presente, gosto de me viver nesse presente. É uma construção muito sensorial. Ela me conhece cada dia mais e eu me desconheço cada dia mais”, ressalta. A cantora diz ainda que o problema para sua mãe nunca foi ela ser travesti e sim que nunca teria sossego. “Ela sempre prezou pelo sossego, poder sair sem medo. E nós somos corpos em que genocídio virou tradição no país que vivemos. Nossa luta vem de mudar esse lugar”, enfatiza. É justamente sobre esses dilemas que se trata a música “Luta por mim”.
A carreira artística
Jup começou a carreira sem pretensão. As primeiras composições foram aos 13 anos quando o pai que se chamava Celso morreu. “Ele foi muito amigo, muito próximo. Conversávamos sobre negritude, identidade de gênero, sexualidade, foi uma perda muito grande. Foi quando deixei de ser criança e passei a ser uma espécie de provedora e a cuidar do meu irmão e da minha mãe”, relata. Nesse momento difícil, a escrita foi uma forma de ela materializar os pensamentos e a tristeza. “Se eu colocasse em palavras seria mais fácil”, acrescenta.
Adolescente, Jup começou a conhecer a galera anarquista, da poesia marginal, mas ainda era tímida para expor seu trabalho. Um dia mostrou um texto para um amigo e ele incentivou que ela publicasse um fanzine [publicação não oficial e não profissional]. Ela deu de ombros, mas ele imprimiu e os entregou prontos. Jup ainda passou um tempo com a produção na mochila até que começou a entregar no bairro. “Eu era a caricatura da criança viada fofa. Passei a infância e pré-adolescência na igreja. Então quando entregava as pessoas achavam que era coisa de igreja, mas tinha coisas de sexualidade, sobre raça. Comecei a gostar dessa sensação de dar informação na qual as pessoas não esperavam”, conta.
Aos 15, a artista começou a organizar o Sarau do Valo, no bairro Valo Velho, na Zona Sul paulistana, que até então não tinha manifestações culturais. “Fazíamos sem dinheiro, invadíamos a quadra da escola nos domingos. Era guerrilha e um processo muito interessante”, lembra. Jup começou a perceber, no entanto, que corpos femininos e de sexualidade dissidente não ficavam no espaço. “Era um espaço que reproduzia lugares de masculinidade. As apresentações eram de homens que reproduziam machismo e percebi que precisava fazer algo”, diz.
De organizadora virou apresentadora e passou a apresentar suas poesias. Um dia o DJ que acompanhava o sarau soltou uma base e Jup começou a recitar em cima do som. A plateia adorou a apresentação. Dali, surgiu o convite para um primeiro show com o cachê de R$ 50. A cantora ainda não tinha canções de palco. “Eu era meia caipira. Não tinha acesso à tecnologia, peguei computador emprestado da minha prima. Levei CPU, monitor e fui me locomovendo do Valo Velho para o centro morrendo de medo de ser roubada”, relata, aos risos.
Os produtores acharam meio fofo, meio sem noção o fato de ela ter levado as músicas no computador e não em um pen drive. Na apresentação tinha três poesias decoradas, além de clássicos como “Você me Vira a Cabeça”, de Alcione; “Wisky a Gogo”, do Roupa Nova; e outra da Gaiola das Popozudas. “Eu achei que foi um vexame, mas a galera gostou”, conta. Semanas depois, uma produtora que tinha visto a apresentação a convidou para ser rainha de cerimônia de um dos palcos da virada cultural de 2010, quando Jup tinha 16 anos. O cachê já chegava aos R$ 600. Ela não tinha certeza se o convite era real, mas convidou um amigo DJ para dividir o palco. “Essa foi minha grande e primeira apresentação para público populoso”, recorda.
Jup caiu na graça da cena paulistana e começou a fazer rap. “Apesar de ter apresentação ‘mais estranha’, mais queer, fazia muita festa eletrônica, na maioria branca. Fui imergindo na música, batalha de rima e saraus principalmente os da Zona Sul”, relembra. Uma das parceiras mais frequentes foi com a cantora Linn da Quebrada, que ela conheceu na primeira edição do SP na Rua, em 2012. “Estávamos trocando de palco e amigos em comum me apresentaram a Linn. Eu virei e perguntei: ‘nossa é Linn de linda?’. E ela revirou os olhos. Pensei, perdi a oportunidade, mas não o flerte”, conta.
Jup diz que Linn sempre a encantou por ser bonita e por ter uma vivência queer num universo em que as discussões sobre sexualidade sempre vinham de pessoas brancas. As duas não ficaram amigas de cara, mas começaram a cantar nas mesmas festas e tinham que esperar o metrô abrir para voltar para casa: Jup para Valo Velho e Linn para a Fazenda Juta, na Zona Leste. “Fomos virando cúmplices, de passar veneno e delícia juntas. Começamos a trabalhar muito juntas. Era quase o Pink e o Cérebro. Se tinha R$ 50 de cachê, a gente dividia. Isso quando a festa não tinham grana e a gente não tinha nem dinheiro para voltar para casa”, lembra.
Linn começou a dividir as escritas dela com Jup, que passou a produzí-la em 2015. “Virei a severina dela, fazia do flyer à produção artística”, lembra. Quando Linn fez o primeiro show do Periferia Trans no Grajau, Jup ia fazer uma performance com uma roupa produzida a partir de materiais recicláveis. “Eu tinha demorado semanas para fazer, nem tinha me apresentado ainda, mas quando a vi, tirei a roupa rasguei e fui para o palco dançar só de calcinha”, diz.
A presença de Jup deu mais segurança para Linn, que passou a chamá-la para dividir o palco. Jup ajudou Linn a cocriar o álbum “Pajubá”, fizeram juntas o filme “Bixa Travesti” e apresentam um programa de entrevistas chamado Transmissão, no Canal Brasil. “Nosso encontro foi tão forte que acabou se transformando em muito trabalho juntas. Temos encontros e atritos, pois somos muito parecidas e muito diferentes”, ressalta.
Assista ao videoclipe de “Luta por Mim”:
*Originalmente publicada no Alma Preta
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