MahalPita resgata Egito para contar e fazer nova história do samba reggae na Bahia

Guilherme Soares Dias

MahalPita é desses artistas inquietos que vive e trabalha para a música. Começou no ofício cedo, fez sucesso com Baiana System, produz o Afrocidade e agora parte para carreira solo. O trabalho bebe das fontes ancestrais do Egito, sempre tão presente nos carnavais baianos, para contar e fazer nova história do samba reggae, ritmo que nasceu junto com o multiartista, mas que ele acredita que não se desenvolveu em todas as suas potencialidades.

Mahal faz pagode digital, mas prefere não classificar a própria música que produz ou os novos sons que vem da Bahia. Os seus trabalhos pensam e falam sobre o corpo negro na Bahia, que, segundo ele, tem uma universalidade. A primeira música solo que lançou chama “Oração aos Pretos-moços’’ (veja aqui: www.mahalpita.com)

O projeto visual é o 1º capítulo da narrativa multimídia M8TADATAH, uma ficção documental que intersecciona questões do extermínio negro, os atuais dilemas globais ligados à alta tecnologia e crenças ligadas a pós-morte. A narrativa parte da história de extinção do SambaReggae (manifestação político-cultural negra criada nos anos 80 em Salvador) e de toda existência negra como conhecemos. Ainda que dentro da narrativa, a visão sobre a morte do Samba Reggae não é ficcional, e sim documental.

“Com o sucateamento das políticas públicas, programas culturais e as perseguições às manifestações artísticas originais no país, o Samba Reggae está em alarme. A cada ano, o desinteresse privado e o descaso governamental, agrava o cenário de falência estrutural que persegue as entidades afros há anos, dificultando cada vez mais a continuidade de suas atividades artísticas, assim como os trabalhos sociais e educacionais, a disseminação do ritmo e a formação sócio-política das comunidades integrantes”, defende o artista.

Ele lembra que as sequelas do racismo estrutural, as perseguições políticas criminosas e a própria ação do tempo, também vem arrebatando as lideranças, mestres e mestras e atores fundamentais dessa manifestação. O trabalho M8TADATAH propõe um re-acesso, de um ponto de vista sonoro e visual, a esses legados do Samba Reggae.

Passado

O multiartista diz que sua relação com a música vem antes do nascimento, uma vez que 80% da família trabalha com música. “Nasço em contexto artístico. Conheci a música pelo trabalho, como atividade de subsistência. Demorei para encontrar a música no lugar da arte”, diz, ressaltando que conheceu cedo a perspectiva da labuta da arte e que ela tinha essa função em sua casa. “Não faço o que quero fazer sempre, mas o que precisa ser feito”, conta.

Teve bandas na época da escola. No vestibular ficou entre cursar algo ligado à música ou design. Escolheu a segunda opção porque acreditava que não poderia bancar a música. O trabalho de conclusão de curso foi um curta chamado “Do nosso jeito”, sobre o pagodão baiano. O material virou média e longa metragem, mas nunca foi concluído. “Não tinha registro das pessoas que estavam fazendo isso, passei dois anos investigando. Conversava com músicos e ouvia suas histórias”, relata.

Começou a fazer música no computador desenvolvendo o que chama de pagode mais digital em 2008. O trabalho o une a outro artista inventivo que se destaca no cenário da nova música baiana, Rafa Dias. Em 2009 junta-se ao Baiana System e começa a fazer trabalho casado com som e imagem, chamado live letronics. “Cuidava dos beats e sintetizadores. Foi muito frutífero, alcançou lugar de responsabilidade, de devolver para a cidade o que ela nos deu como indivíduo. Salvador é um lugar generoso na formação do indivíduo. Quisemos, de alguma forma, retornar isso pra cidade. Fazer a substituição dos marcos culturais”, diz. A parceria rendeu frutos, CDs, shows com casas lotadas, carnavais arrastando multidões até 2019, quando Mahal sai da banda.

Presente

Ele acredita que o atual trabalho solo é continuação da atuação que já vinha tendo junto com as bandas que contribuiu. “Não enxergo ruptura. É continuação, venho de processo individual, vivenciei processos criativos muito intensos nesses dez anos de percurso, e coletivo, que é um exercício de negociação. Agora, dou continuidade a interesses pessoais. Nunca falei tanto da história da minha família. É minha perspectiva da cidade”, afirma.

O desafio de se jogar sozinho é novo. Afinal, agora é só Mahal no front. O trabalho novo experimenta a vida, em um ano que se falou tanto de morte como está sendo 2020. “Tento criar ou recriar novos símbolos e significados para a ideia de morte. Aqui no Ocidente temos ideias de morte como finita. Isso é uma visão limitante. Na parte biológica viramos solo, nutrientes para outros seres vivos. Há esse renascimento e reencarnação”, afirma.

Ele diz que o disco é um alerta para abrir os olhos e ver o quão as coisas são finitas. “O corpo negro é finito. Afinal, o Brasil é o país que mais mata pretos. E o que fazemos com isso?”, questiona. Como não acredita no fim com a morte, Mahal traz intersecção entre filosofia do Egito e traça paralelo com o samba reggae. Estão presentes a subjetividade da liturgia egípcia e a humanidade das pessoas negras.

Questiono se essas complexidades conseguem atingir o grande público, Mahal afirma que a música popular é complexa e que a população negra também. “Temos um desenvolvimento de campo popular. Há um campo experimental da música, mas conseguimos chegar no carnaval e tocar para a grande massa. Afinal, não tem nada mais experimental que a própria rua”, considera. Ele lembra que o disco “Refavela”, de Gilberto Gil, é complexo e popular ao mesmo tempo.

Samba Reggae

Para o cantor, o samba reggae é um aprendizado e teve processos interrompidos de desenvolvimento artístico que agora são continuados. “Não é romântico, mas faz desenvolvimento filosófico do que é esse corpo negro na Bahia”, considera. Por isso, a necessidade de Mahal de ir na ancestralidade e acessar a memória para falar do Egito. “É uma fonte não apenas na perspectiva sonora, mas de conhecimento”, afirma.

O trabalho também possibilita o encontro de Mahal consigo mesmo. Ele viveu no Pelourinho na infância e voltou em 2020 em tempos de pandemia. “São diversas conexões que vou fazendo, consigo acessar diversas memórias. Vi o último tambor antes da quarentena e o primeiro após liberarem algumas atividades. É uma manifestação que é frágil. É uma ideia distópica”, classifica, lembrando que grandes blocos afros como Olodum e Ilê Aiyê têm dificuldades e que os menores passam por situações ainda piores. “Se com carnaval estava difícil, sem carnaval fica mais. Essas escolas estão fadadas ao fim, pelo sucateamento político”, avalia. O samba reggae é contemporâneo ao cantor que nasceu no mesmo ano que a primeira música do Olodum. “É meu irmão, não meu avô”, diz.

Futuro

Em 2021, sai o primeiro disco do Afrocidade do qual é produtor musical. Os trabalhos de Mahal também o conectam com os músicos que formam o Attoxxa, outra banda baiana que moderniza o suingue e as batidas da Bahia. “Começa pensando em antigos carnavais e passa a dialogar com a periferia. No Afrocidade, sigo esse trabalho de tradução de universalidade da Bahia, num recorte histórico. Temos cidades na Bahia que já foram muito importantes no contexto global. Por meio de investigações artísticas tento conectar de novo essas histórias. Não é um processo local, regional. Salvador está na linha universal”, defende.

No próximo ano, ele vai ver nascer também os discos que fez como produtor musical de Rico Dalasan e Mano Mago com Giovanni Sidreira, além do próprio trabalho solo. “Nesse processo de tantas perdas, abri possibilidade de enxergar. Poder fazer Mestre Curiô, de capoeira, perceba e volte a se conectar com esses artistas. Temos que reverenciar a importância desses mestres”

Mahal diz que sua música se conecta com outros artistas independentes que têm experimentado e lançado novas possibilidades da música, como Cronista do Morro, Edgar, Mc Tha. “Isso é fruto de um tempo, tem liga. É algo gasoso, que dialoga com passado e futuro”, afirma. Questiono se dá para colocar essa nova música baiana em um rótulo, como nova Bahia, Bahia Bass ou algum outro e Mahal que bebeu na fonte egípcia do “decifra-me ou te devoro”, responde: “Não dá pra costurar o tempo, prefiro o mistério”.

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Redação

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