Eu vou para Maracangalha, eu vou

Distrito que Caymmi nunca visitou é marcado por música, gente simples e histórias do recôncavo

 

Texto: Guilherme Soares Dias/Fotos: Heitor Salatiel

 

Eternizado pela música de Dorival Caymmi, o distrito de Maracangalha tem 4 mil habitantes que nunca receberam a visita do famoso compositor. O que não impediu de ter um tour no qual moradores recontam sua história levando os visitantes a uma viagem no tempo regada a causos típicos do recôncavo baiano. O passeio organizado pela Liga Cultural Maracangalha vai de show particular da orquestra da cidade à visita aos principais pontos do lugar: ruínas da usina de cana-de-açúcar, praça, igreja matriz, antigo cinema, armazém brasileiro, cemitério e um bar com degustação de cachaças locais.

A história começa nos trilhos que ligam o distrito de São Sebastião do Passé a Salvador. E é a Orquestra de Maracangalha quem nos recebe tocando a música que carrega o nome do distrito. Canção que serve de pano de fundo para essa volta pelo passado, quando trens de passageiros da empresa Leste Brasileiro saíam da estação da Calçada, na região central da capital baiana, e desembarcavam ali ou seguiam para Santo Amaro da Purificação. A antiga estação foi abandonada, virou moradia e depois foi destruída por um incêndio na década de 1980. Hoje, as ruínas estão tomadas pelo mato. “A gente sempre limpa, mas as chuvas acabam fazendo o mato voltar”, justifica o prefeito da cidade, Breno Konrad (PSD).

De lá, seguimos para o que restou da usina de cana-de-açúcar. Construída em 1912, o local funcionou até 1987, quando a região ainda era tomada por plantações de cana. Denominada de Cinco Rios, mesmo nome de uma fazenda que existia na região, a usina deu pujança ao vilarejo e foi responsável pela construção de casas e financiamento de projetos por Maracangalha. “Do alfinete ao caixão”, era responsável por ofertar moradia, deslocamento, água e luz de todos que ali trabalhavam.

Até hoje as vans que levam do distrito à cidade de Candeias têm o nome de Cinco Rios, e não o da música de Caymmi. Tanta importância se deve também ao fato da usina ter sido uma das mais modernas da época, com maquinários trazidos da França. Os moradores contam que a primeira saca de açúcar foi doada para Dom Pedro II, que estudou na escola agrícola de São Francisco do Conde, cidade próxima da usina, que hoje tem suas ruínas tombadas pelo patrimônio histórico da Bahia.

No auge, a usina produziu 300 mil sacas de açúcar por ano. A importância era tanta que foi desenvolvida um tipo de cana específico para ser moída na fábrica. Denominada 40/13, a planta tinha um palmo de um gomo para outro e era mais doce e macia do que o comum. Hoje, as plantações de cana na região são raras, mas ainda é possível encontrar essa espécie por lá e tomar um caldo de cana.

O doce da cana dá lugar aos causos, típicos de cidades do interior. A praça, que costuma ser o ponto de encontro desses pequenos municípios, dá nome ao compositor e tem formato de violão. Caymmi nunca teria ido de fato ao distrito. Mas há moradores que juram que ele foi à inauguração da praça e garantem ter autógrafo dele. Os documentos nunca apareceram, mas as histórias circulam. No cemitério, está enterrada a sambadeira Maria Amália Silva, uma das mulheres mais bonitas do distrito, que dizem ser a Anália da música.

A Capela Nossa Senhora da Guia tem missa aos domingos e festa da padroeira de mesmo nome, que inclui procissão pelo distrito e apresentações musicais. No antigo Gardênia Azul, local de entretenimento dos trabalhadores da usina, assistimos ao curta-metragem “Os pitorescos personagens de Maracangalha”.

No Armazém Brasileiro, um mercado sortido e diverso, erguido em 1931 que ostenta suas onze portas e o título de shopping da cidade, batemos um dedo de prosa com o dono Bosco Oliveira Lima, que há 40 anos comanda o local. “Eu conheço todo mundo. Todos vêm comprar produtos aqui”, diz, entre um gol e outro da cachaça produzida por lá. No pátio, o grupo Samba Chula de Maracangalha toca para os visitantes enquanto as sambadeiras, ambas com mais de 60 anos, remexem com suas saias de chita.

No sítio que abriga o Bar Cana experimentamos mais cachaças e degustamos algumas comidas locais. No Mercado de Maracangalha, o passado é mais presente do que a atualidade. Tinha um açougue, tinha lojas, tinha festas e movimentos. Hoje, apenas alguns poucos bares se mantêm abertos.

Com clima pacato, casas térreas ou sobrados que remetem a décadas passadas, a riqueza cultural desse lugar são as pessoas. Uma população majoritariamente negra que vive de forma simples e cultuando costumes do passado.

É o caso de dona Maria São Pedro, a sambadeira mais antiga, que “esfria” a água em uma jarra de barro. Aos 80 anos, ela nos oferece a água com um sorriso de quem tem prazer em receber visitas e ser reconhecida como história viva do lugar. Com um quintal de terra cheio de galinhas, a casa de três cômodos é simples e decorada com folhinhas que tentam marcar um tempo que parece não passar, mas é marcado por tardes quentes e arrastadas. A TV está ligada e transmite a tragédia de Brumadinho (MG) fazendo uma conexão com o resto do mundo. Dona Maria São Pedro é devota do santo e faz rezas. Ela ia terminar aquele dia intercedendo por aqueles que perderam casas ou entes queridos.

Isolada no recôncavo, Maracangalha sonha em ter o próprio carnaval, com quatro dias de festa e marchinhas ditando o ritmo. O desejo dependeria de investimento da prefeitura ou do governo do Estado, que empurram um para o outro as responsabilidades pelo esquecimento do lugar.

Canção. A música “Maracangalha” foi composta por Caymmi em 1955. Tem apenas sete versos diferentes que vão se repetindo. Assim como o compositor nunca foi ao distrito, Anália nunca teria existido. O nome da mulher foi inserido na canção para rimar com o nome do lugar que o compositor achava sonoro. A música foi inspirada numa história de Zezinho, amigo de infância de Dorival, que tinha uma amante numa outra cidade chamada Itapagipe. Quando precisava visitar a outra mulher dizia que ia para Maracangalha, onde existia a usina. E sempre voltava para casa com pacote de açúcar para provar.

Ouça a Dorival, falando sobre a composição: https://youtu.be/31_rVCFTLts

 

Depois da música, Maracangalha foi notícia de novo em 2007, quando um avião com cerca de R$ 5,6 milhões em cédulas caiu próximo ao distrito. De acordo com a empresa responsável pelo avião, o dinheiro pertencia a vários bancos que costumam fretar aeronaves em conjunto para transportar grandes valores. Os quatro tripulantes morreram e o dinheiro foi saqueado por cerca de 120 pessoas.

A notícia marcou o lugarejo que começou a receber visitas de piratas modernos em busca da fortuna. Passados mais de dez anos, os visitantes vão ouvir as histórias e conhecer o roteiro feito pelos moradores do distrito, que criaram a liga cultural. Considerando o calor, o melhor mesmo é ir de chapéu de palha, mas ao contrário de Caymmi, eu posso dizer que: Maracangalha, eu fui! (e aposto que se ele tivesse ido, a música teria mais do que apenas sete versos ; P)

Luciana Paulino e eu rindo à toa com as histórias do lugarejo. Foto: Henrique Carrara

SERVIÇO:

Liga Cultural Maracangalha

O passeio ocorre aos sábados, uma vez por mês, e custa R$ 50 (com almoço e café da manhã incluso).

O grupo pode ser encontrado pelo Instagram ou pelo telefone (71) 99639-2577 (Vanessa Victória).

Como chegar:

De Candeias:

Vans com o nome de Cinco Rios partem da feira localizada em frente a rodoviária de segunda a sábado, a cada 40 minutos. Custa R$ 3,50. Um Uber sai em média R$ 20. Candeias fica a 50 quilômetros de Salvador e têm ônibus de 20 em 20 minutos saindo da rodoviária, que custam cerca de R$ 8.

Edição: Marina Miranda

Compartilhe:
Avatar photo
Redação

O Guia Negro faz produção independente sobre viagens, cultura negra, afroturismo e black business

Artigos: 698

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *