Racismo linguístico é sobre palavras?

*Texto originalmente publicado em Língu@ Nostr@, Vitória da Conquista, v. 8, n. 1, p. 3-15, jan/jul. 2021

 

Logo quando eu lancei meu livro Racismo linguístico (NASCIMENTO, 2019a), eu recebi convite de alguns jornalistas para matérias especiais ou de profissionais de redes sociais para live. Em qualquer um dos casos, essas pessoas ainda não tinham lido o livro e queriam saber daquela novidade. Novidades, porém, são perigosas porque confundem escolas e unem progressismos distintos, muitas vezes partindo de loci de enunciação bem distantes.

Vi que era uma cilada. A maioria dessas participações era sobre palavras. Justamente a antiescolha que me levou a escrever o livro e não fazer um trabalho puramente terminológico, etimológico ou lexicográfico, áreas onde não tenho especialidade. A minha escolha por partir para além das palavras era óbvia, mas só para mim. Para os demais parecia mesmo que eu estava justamente fazendo algo que até ali eu justamente criticava, o politicamente correto.

Antes que apressadamente eu seja confundido com terraplanistas que lançam por aí manuais ou guias politicamente incorretos de história, e preciso dizer: não confundam. Eu escrevo o Racismo linguístico como um acadêmico ou escritor influenciado pelas teorias decoloniais latino-americanistas e o pensamento do movimento negro organizado em células tradicionais e entidades ligadas à luta institucionalizada. O politicamente correto, que lida com mudanças de linguagem, é neoliberal. Veio do norte global a bordo de uma imprensa local que traduz ipsis literis tudo que é postado pela imprensa tradicional daqueles países.

Embora no norte global o termo tenha passado a uso por influência da autora, documentarista e militante afro-americana Tony Bambara,[1]o seu uso no Brasil foi impulsionado por uma hipocrisia das classes médias brancas que, à época, já conviviam com notícias ao longe do fim formal do sistema de Apartheid com, posteriormente, o movimento Black is beautiful.

O politicamente correto é uma concessão neoliberal e não uma marcação das formações históricas que formatam a existência de uma palavra. Quando eu lancei o livro, não estava interessado em palavras em si porque já havia fartas discussões nos estudos linguísticos sobre palavras e textos, tanto na linguística geral quanto em campos disciplinares e multidisciplinares após a chamada Virada pragmática.

Na verdade, o problema da concepção de palavra como uma unidade isolada de suas formações históricas era meu incômodo, e isso necessariamente não era uma discussão oca na Linguística. Se nos debruçarmos no mundo branco, Bakhtin (1997), por exemplo, ao virar a chave do estruturalismo rumo a uma concepção de língua/linguagem na interação, usa palavra como um fenômeno ideológico por excelência. Mais do que isso, para ele palavra não é um fenômeno afastado das condições de produção. Isto é, atos responsivos, inerentes à condição de produção da palavra como fenômeno ideológico por excelência, são dialógicos porque palavras surgem e se reproduzem justamente em formações históricas.

O racismo é uma formação histórica. É necessário, desse jeito, tal como se dá na escrita de Moore (2007), desmontar a ideia de racismo como apenas um aspecto ideológico. Se fosse apenas ideológico, bastava mudar os meios burgueses sociais de produção que o racismo desapareceria. Fernandes (1978) parte dessa ilusão de ótica em sua ideia de “integração” do negro. Uma premissa errada que nasce justamente da ideia da ideologia, mas não da formação histórica que pare a dimensão ideológica. Ou seja, não é a ideologia que fomenta uma dada formação histórica, mas são formações históricas que se retroalimentam de ideologias e as condicionam como ideologia. Isso é linguagem.

Robinson (1983) determina esse debate em sua análise sobre o capitalismo racial. Antes de raça se tornar um elemento sofisticado do discurso exterminador do branco europeu em sua invasão, as bases históricas da Europa média já denunciam um protorracismo, que mais tarde vai ser agenciado por meio da linguagem na nomeação colonial.

Ou seja, é o racismo, enquanto fruto de formações históricas, que formata toda a lógica do mundo moderno, e não ideologias modernas que formatam o racismo num racismo científico. Não é o capitalismo que, pré-existindo, faz o racismo existir, mas o racismo que, após a sofisticação das bases racialistas do próprio europeu e de uma procura de justificação para a invasão colonial, faz o próprio mundo moderno existir.

Não basta, portanto, trocar apenas palavras como unidades da superfície da língua, como querem os que estão confusos entre racismo linguístico e politicamente correto. O segundo defende uma mudança ingênua na superfície da língua enquanto estou propondo justamente que as bases de formação histórica sejam nosso foco.

Fonte: Freepik
Fonte: Freepik

 

II

 

Comecei esse trabalho justamente pela palavra negro. Em se tratando de uma palavra que, entre nós, se expandiu justamente na resistência dos movimentos negros, ela tem se tornado algo cada vez mais abstrato, sem lastro com a racialidade, já que o corpo retinto, aos poucos eliminado fisicamente, vai deixando rastros de racialidade que, em mestiços, formatam traços de etnicidade negra.

Embora, portanto, se possa defender essa palavra para advogar pelas cotas, ou para ampliar o escopo dos pretos retintos para mestiços branqueados que guardam alguns traços de seus ancestrais diretos e indiretos, tanto físicos quanto imateriais (como narizes, bocas e sobrenomes de batismo), a palavra negro é originalmente um signo de horror.

Mbembe (2014) foi minha primeira grande inspiração naquele momento. Isso porque, ao contrário da própria tradição dos movimentos civis nos Estados Unidos, ele incendiou a sua crítica à razão negra justamente retomando esse substantivo que, agora em tentativa de ressignificação, ainda tem suas ligações com as formações históricas que lhe forjaram.

O substantivo negro é uma ficção útil porque atua como uma fantasia política que nasceu de um fantasma político, o racismo. Pessoas pretas comuns, não raro, odeiam esse substantivo. E não é por serem manipuladas ou despolitizadas apenas,[1] mas porque, como seus corpos são guardadores de um passado que esta modernidade quer eliminar, aquele substantivo não lhes traz esperança, mas a lembrança de um horror que eles mesmos querem superar. Isso, por outro lado, não deslegitima as estratégias políticas, ainda que arriscadas, dos movimentos negros, como é o caso do movimento negro educador que, conforme relembra Munanga (2004), acaba trazendo consigo contradições. A meu ver, por exemplo, a luta histórica pelo reconhecimento e inserção na universidade nos inclui, mas corrobora nossa suposta incompetência dentro de uma lógica cognitivista, onde educação formal define o que é saber e o que não é.

Quando escrevi o livro, portanto, eu estava lembrando da necessidade de não apenas reproduzir um termo que foi universalizado pelo movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, mas de questionar seu lócus de enunciação.

Falar de palavras e de sua dimensão histórica era, assim, reinscrever a ideia de racismo linguístico na lógica de centralidade da língua, não como contingente que faz o real existir ensimesmado pela linguagem, mas como um real que cria interdependência com a linguagem para se produzir em ideários de poder colonial. Ou seja, a linguagem realmente recria um real, mas o real também cria linguagem. Mas em nenhum dos casos há prevalência de uma construção que dê margem apenas à modificação do jogo da linguagem sem modificação do jogo do real. Proibir funks com teor machista de serem tocados não muda a lógica patriarcal. Tampouco muda a lógica patriarcal combater a realidade sem mudar as condições que produzem artefatos de linguagem, como é o caso da própria indústria cultural.

Tampouco seria possível falar positivamente de uma Amefricanidade (GONZÁLEZ, 1988) e devir-negro do mundo (MBEMBE, 2014) como ensimesmados como frequentemente se pode ouvir. A novidade desses conceitos é justamente sua dimensão internacionalista. A Améfrica Ladina de González (1988) é um lugar culturalmente negro, que tem eliminado corpos retintos e herdado seu falar, seus costumes e suas tecnologias de existência. O devir-negro no mundo só é possível depois de determinada a extinção do corpo preto pela fome, pelas guerras e pela política de aprisionamento e extermínio em massa do corpo escurecido, em que o devir exporta a condição negra como artefato neoliberal.

Cesaire (1971), ao atribuir ao fascismo à não resolução e reparação histórica do que foi a escravidão e o seu evidente racismo colonial, vai nessa direção. A condição testada e sofisticada com o negro, de um racismo científico que se desenvolve com artifício para justificar sua exploração, vai ser igualmente testada e sofisticada no próprio mundo branco, entre os brancos. Isso quer dizer que o branco manterá o seu racismo, sempre tendo como referência o negro, contra tudo aquilo que não lhe pareça a norma visível brancocêntrica nos fenótipos.

 

Foto: Alex Sander
Foto: Alex Sander

O negro é uma palavra que nasceu para acompanhar o fim do negro e o substituir, embora teóricos racialistas e culturalistas não esperassem esse enredo. Digo isso por causa do contexto de pretos em extinção, por força de casamentos interraciais e genocídio, em que o termo negro, embora tendo o corpo preto em desaparecimento, parece se fortalecer. Ou seja, em que pese se anteviu o fim dos negros e mestiços desde 1910 (SCHWARCZ, 2011), os elos dessa identificação não seriam quebrados totalmente graças aos últimos acontecimentos, como a exportação da condição negra após o esgotamento da existência negra no mundo colonial.

Muniz (2009) vê esse dispositivo da significação do negro no contexto da aprovação das políticas de ações afirmativas nas universidades. Para ela, a essencialização não é apenas algo bobo, mas uma estratégia política que produziu efeitos reais naquele momento, dadas as conquistas políticas em andamento.

De fato, estamos numa encruzilhada política de grande relevância. Embora a linguagem continue sendo um artefato de estratégia, outra lógica advinda das lutas dos movimentos civis nos Estados Unidos tem se tornado predominante, que é a identificação cultural como negro. Tenho pensado esse fenômeno como raça sem racialidade, o que cria uma etnicidade negra testemunha do fim dos corpos retintos.

Por outro lado, assim como a discussão de racismo linguístico não deve se limitar a vocábulos ensimesmados, não estou me delongando em discussão sobre o colorismo[2]. O Brasil, aliás, tem farta discussão desses aspecto desde Guerreiro Ramos, e com sua profundidade teórica ao falar do cinismo do branco nordestino (GUERREIRO RAMOS, 1955). Dessa forma, mal resolvidos, os brancos inventam o negro, mas também se inventam como negros quando podem ganhar com isso, alegando justamente a tese da raça sem racialidade, uma etnicidade negra advinda da ideia de raça do one drop rule, quando, no caso do Brasil, os atentados raciais escolhem os fenótipos negros seguindo uma hierarquia que tem a cor em primeiro lugar. Quando digo que não estou me delongando sobre a questão do colorismo, é justamente porque essa é uma dimensão muito pequena desse enorme debate de raça sem racialidade e de etnicidade negra testemunha do extermínio do corpo negro escurecido.

Estamos falando aqui de um negro que já está universalizado e reificado por um Atântico que cria na premissa da unidade (GILROY, 2001) um motivo para pintar esse oceano negro de vermelho.

 

III

 

A discussão de racismo linguístico parece, então, flutuar porque carece de explicação, digamos, científica. Ironicamente, do ponto de vista desse pensar branco, não basta ir para a experiência vivida, como apregoou Fanon (2008) no caso dos antilhanos que olhavam a língua francesa como uma forma de existir, ainda que temporariamente, na linha tênue do ser.

O racismo linguístico ainda é um conceito pouco acadêmico porque sua investidura não é puramente linguística, mas histórica. É a história que provoca o conhecimento dos estudos linguísticos nesse caso, mas não necessariamente o contrário tem acontecido.

Outros conceitos usando a relação entre linguagem e realidade estão em enorme quantidade em pesquisas e estudos nas ciências da linguagem há muito tempo. Fora do Brasil, conceitos como ideologias linguísticas (SILVERSTEIN, 1979; IRVINE e GAL, 2000), línguas como invenções (MAKONI e PENNYCOOK, 2007), direitos linguísticos (MAY, 2014), a perspectiva raciolinguística (ALIM, 2016; ROSA e FLORES, 2017), a perspectiva translíngue (GARCIA e WEI, 2014), e cidadania linguística (WILLIAMS E STROUD, 2015) são bastante divulgados e utilizados.

No Brasil, onde muitos campos não necessariamente se articulam com esses, houve amplo desenvolvimento de campos disciplinares e multidisciplinares como a sociolinguística variacionista, a pedagogia da variação linguística, a pragmática, a semântica da enunciação e a análise do discurso que, sob várias influências, produziram bastante nessa direção.

Entendo que a grande novidade do racismo linguístico não é linguística, dado o contexto que, no âmbito do próprio livro, eu pareço rejeitar com força a primazia que o pós-estruturalismo ainda dá ao linguístico. A grande novidade, penso eu, é a inspiração de um pensamento sobre raça e racismo como formações históricas, que ensina à Linguística como uma língua moderna é indissociável de uma estrutura de racialização.

O racismo linguístico é a relação inderdependente de língua e racismo na expansão de seus elementos. Enquanto palavras da língua são racistas, porque a língua guarda relações racistas, as pessoas usam a língua para metaforizar o racismo com expressões onde pessoas pretas estão na ponta da opressão, como é o caso do nome macaco. O racismo linguístico não se atém a termos que são racistas (como lado negro da vida, escravo-mudo), mas à própria língua em si. Por isso, não se trata de se fazer um estudo lexicográfico (do qual realmente estamos carentes) sobre esses termos, mas identificar que a língua não para de produzir racialização.

Por isso, eu identificaria de maneira didática o racismo linguístico como a racialização que acontece na, pela e através da língua. Expressões como lado negro ou ovelha negra são exemplos dessa racialização que já não se pode esconder na superfície da língua. O racismo proferido em metáforas ou com o uso da própria palavra negro é exemplo do racismo pela língua. O último racismo linguístico que eu destacaria é aquele através da língua, que se difere do racismo “pela” língua porque é fomentado nas chamadas políticas linguísticas, que são, na maioria das vezes, políticas diretas ou indiretas do Estado que selecionam os falares de povos brancos como mais adequados e dignos de serem falados ou ensinados.

No entanto, mais do que isso, aqui estou identificado a própria formação, isto é, essa relação interdependente de língua e racismo, como racismo linguístico, porque, ao identificar essa formação, será possível entender como as demais formas de racismo se retroalimentam.

 

Colonizadores assassinos são homenageados em Portugal. Fonte: Pixabay
Colonizadores assassinos são homenageados em Portugal. Fonte: Pixabay

 

IV.

As chamadas políticas linguísticas são contextos mais incisivos para entendermos como esse chamado racismo linguístico se alimenta da formação histórica que é o racismo.

A invenção de línguas é um dispositivo de discursivização colonial que, de acordo com Severo (2016) integram a ideia de progresso que sustenta a colonialidade. O racismo, como elemento de base histórica, é parte central desse dispositivo à medida que o corpo negro é coisificado.

A educação linguística, se vista a partir da lógica negra, esbarra num outro ponto contraditoriamente essencial. Como se não bastasse, ao contrário dos povos indígenas, que tiveram o ensino de português como forma de evangelização e domesticação, o negro foi ignorado quase que completamente nesse processo. Se, por um lado, isso não produziu efeitos diretos de escolarização, por outro o corpo animalizado produziu no lócus de enunciação ignorado. Isso é importante porque retoma a importância do segredo e do sagrado para algumas culturas africanas que, tendo entre representantes no Brasil, tanto tradicionais iorubanos quanto islamizados oriundos de táticas de guerras já vistas no mundo pré-colonial africano, vão usar essa política linguística que os ignora a seu favor.

As rebeliões negras são farto documento histórico dessa direção. Nos faltam elementos para afirmar ou negar os argumentos de crioulização (LUCCHESI, 2019), que para mim ainda é uma discussão essencialmente branca, mas são fartos os movimentos que indicam uso estratégico da linguagem e língua pelos racializados.

A Revolta dos Búzios (1798) e a Revolta dos Malês (1835), a Greve Negra do Engenho de Santana (1789) e a Greve Negra de 1857, na Bahia, são exemplos de usos da linguagem como dispositivo de luta estratégica. No caso das revoltas, o uso do árabe confundia o monolinguismo do branco com expressões e manifestos disparados da porteira-para-dentro da resistência antiescrava. Nas greves, a própria motivação do nome greve pressupõe que aqueles trabalhadores não estavam supostamente se lendo pela mesma lente que motivava quem os chamava de escravos. As cartas de greve são formas desses escravizados de se ler, embora muita gente apenas credite nas biografias de escravizados essa leitura, esperando uma mesma estratégia de escrita de todos os escravizados.

O pretuguês vem dessa resistência. Embora o trabalho de González (1988) não se dê no terreno do linguístico, seus argumentos do pretuguês são historicizados no linguístico. Ainda que fenômenos como o rotacismo tenham existido em outras épocas, como nas mudanças do latim, a observação desse fenômeno pela antropóloga leva em conta a população negra e o racismo como contexto de si, e não uma idealização diacrônica do sistema-mundo que descorporifica corpos numa universalidade epistêmica. O fenômeno é explicado por suas bases e, para aquele contexto, existindo numa comunidade de prática linguística negra, ele passa a ser um fenômeno do pretuguês.

Há, porém outros fenômenos que nos ajudam. O trabalho de Pessoa de Castro (2011), etnolinguista branca, nos dá boas pistas. Assim, o bantuguês, fonte linguística que se torna mais comum na forma de falar do país, é também falado por brancos, como é o exemplo da dupla negação (ex. Eu não vou não), que de origem africana, se torna elemento nacional comum. Ou seja, assim como a Amefricanidade, o pretuguês é sua correspondente estrutura na língua que, ao passo que se substitui negros, se adota a sua tecnológica forma de falar. O negro é, assim, marcado para morrer, mesmo quando se entusiasma vendo sua forma de ser sendo exportada no mundo pop, nas artes e nas ciências.

 

V

 

Por último, eu elencaria o racismo linguístico aliado à interpretação fanoniana de zona do não-ser. Ao falar de uma zona do ser, Fanon (2008) fala de um humanismo que jamais humanizou pessoas negras.

Ou seja, mais do que desumanizar o negro, o humanismo é um aparelho poderoso de discursivização e secularização. Como Fanon (2008) inicia seu trabalho principal elaborando sobre os falares nas antigas Antilhas Francesas (atual Martinica), é possível depreender seu incômodo com a questão da língua.

Eis que ele, homem negro, também foi vítima desse empecilho que atravanca tantas escritas negras. O seu modo descompassado e poético, que lembra, talvez, seu contemporâneo Aimé Cesaire, mas também outras escritas negras, a exemplo das escrevivências de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, parece uma escrita que quer saltar ao texto, que lhe prende, enganando o texto com densidades teóricas ligadas completamente à experiência vivida dos que vivem aquela realidade, quando os que não vivem querem tudo explicadinho.

A língua é uma zona do não-ser para pessoas negras que, vistas como sem-língua, vão sendo pensadas num limbo epistêmico. As pessoas usam a língua para resistir, mas jamais podemos esquecer o que são línguas, para que essa estrutura não seja romantizada. Exemplos cruéis de romantização é a forma como os estudos de letramento têm se dado. O letramento escolar vai sendo sedimentado à base de políticas oficiais de democratização que não tiveram ampla participação negra, porque, caso contrário, jamais teriam o caráter da justiça social como transversal, por exemplo, como é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

Menezes de Souza (2004), Souza (2009) e Ferreira (2014) estão entre aqueles comprometidos com uma visão de letramento que não toma a escola como lugar exclusivo. Infelizmente, eles compõem corrente ainda minoritária nos estudos linguísticos.

A visão de língua como uma zona do não-ser pode contribuir para nos fazer ver aqueles e aquelas que estão como não-ser nessa zona, inclusive nós mesmos. Tenho dado (NASCIMENTO, 2019b) o exemplo de professores de inglês negros que são descreditados ou lidos como incompetentes em língua inglesa como racismo, e neste caso um racismo linguístico que isola esses professores em uma zona do não-ser na língua inglesa.

Os artigos que compõem este número servem de maneira abundante nessa relação. Alguns trazem fenômenos ainda não identificados e outros pontuam antigos. Colonialidade no ensino do espanhol, rupturas epistêmicas, epistemologias e intersecionalidades, vozes de baixo, o papel da internet, colonialidade e mito, linguística aplicada antirracista estão entre os temas abordados nesse dossiê que, com muita potência, pode propiciar o aparecimento de diversos outros.

 

Referências

 

ALIM, H.S. Introducin raciolinguistics. In Alim, H. S., J. R. Rickford & A. F. Ball. (Orgs.) Raciolinguistics: How Language Shapes Our Ideas about Race. New York: Oxford University Press, 2016.

BAKHTIN, M. M. (Mikhail Mikhailovich). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociologico na ciencia da linguagem. 8.ed. São Paulo; Hucitec, 1997.

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CESAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Porto: Cadernos para o diálogo, 1971.

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[1] Devo esse debate aos intelectuais pretos Mônica Francisco Aprígio e Jefferson Campos.

[2] Veja mais sobre essa discussão em < https://www.cartacapital.com.br/entrevistas/o-colorismo-e-o-braco-articulado-do-racismo/>.

[1]  Veja mais em < https://www.blackpast.org/african-american-history/bambara-toni-cade-1939-1995/>.

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Gabriel Nascimento

É linguista e escritor, autor de “Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo” (Letramento editorial). Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), foi Visiting Scholar na University of Pennsylvania, EUA. É professor da Universidade Federal do Sul da Bahia e colaborador no Programa de Pós-graduação em Letras da UESC, tendo atuado e colaborado (como autor ou parecerista) com diversos periódicos, como Critical Studies in Education, Journal of Sociolinguistics, Trabalhos em Linguística Aplicada e Revista Brasileira de Linguística Aplicada. É membro de diversos grupos de pesquisa, dentre os quais o Grupo de Pesquisa em Linguagem e Racismo (do qual é líder) e de diversas associações de área, como a Latin American Studies Association (LASA), Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB), das quais é sócio, além de ser membro do GT de Práticas Identitárias da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL). Autor ficcional, escreve desde os 9 anos, tendo passado por poesia, teatro, conto e romance, sendo esse gênero o primeiro a ter publicado no livro “O maníaco das onze e meia”. Ex-músico, tocou clarineta até os 17 anos, quando já tinha composto uma sinfonia, uma sonata e peças para clarineta.

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