Por Guido Melo*
Entendo raça como uma construção social e reconheço que não existe base científica para diferenciação. A raça humana é somente uma. Porém, na prática, nossa percepção torna as diversidades de fenótipo em diferenças reais. Infelizmente uma coisa não pode ser desassociada da outra.
Seguindo uma linha Jungiana (Carl Jung) de entendimento, a escritora afro-americana Fanny Brewster diz que os efeitos do subconsciente no consciente podem ser devastadores. O corpo negro vem sendo degradado no subconsciente coletivo de pessoas brancas e também de pessoas negras por séculos. Segundo ela, análises lógicas do consciente são guiadas por sugestões do subconsciente.
Tanto negros quanto brancos antirracistas declarados estão contaminados por essa degradação no subconsciente. O que consequentemente exige a todos que no Brasil vivam, um esforço mental de realinhamento para que se possa normalizar o corpo negro como um corpo merecedor de humanidade.
Após anos vivendo fora do Brasil, porém ainda sob os efeitos do racismo brasileiro, continuei a procurar minha humanidade no reconhecimento de outros. Por anos tentei ser humanizado pelos olhos dos brancos brasileiros imigrantes que vivem na Austrália, onde moro desde 2003. No começo, acreditava que se ao menos eles pudessem ver que eu não era como outros negros brasileiros, que eu era inteligente, sofisticado e educado, eles me dariam o ‘’passe’’ para a humanidade.
Eu nada exigia, nada demandava. Somente um pouco de branquitude em troca. Acredito que isso ocorre com muitos negros em situação de minoria, principalmente no exterior. Geralmente somos “prestativos”, organizamos eventos , ajudamos outros brasileiros, estamos sempre dispostos… Não necessariamente por que somos altruístas, mas, sim, por que desesperados, mendigamos humanidade de pessoas brancas.
Agimos como fomos assim ensinados desde o nascimento. Vivemos, então, numa espécie de neurose do abandono, que tem como tripé : a ansiedade; a agressividade; e eventualmente a desvalorização do eu. A falta de autoestima coletiva vivida por muitos negros vem de uma fissão entre o “eu real” (negro) e o “eu sonhado” (branco).
Afro-Resistência na Austrália
Somente em 2018, quando a psicóloga negra Kyky Rodrigues (foto) criou o Grupo Afro-Resistência Austrália, realmente entendi que minha humanidade não viria das mãos de outros. Não viriam das mãos ou da boa vontade de pessoas brancas. Kyky sempre fez parte de grupos sociais negros em seu estado natal, Rio Grande do Sul, e decidiu trazer sua experiência para a Austrália. Desde sua fundação, o grupo Afro-Resistência vem desempenhando um papel fundamental em minha vida e na vida de vários membros. Negros brasileiros imigrantes que aqui vivem, dividem experiências que são específicas da nossa comunidade e que não existem nas comunidades euro brasileiras fora do país (grupos chamados de ‘Brasileiros+nome da cidade) .
Uma das primeiras coisas que eu notei após a criação do grupo é o quanto ter amigos negros é um ato político. Nunca havia me dado conta que amizades são uma escolha consciente e inconsciente, e que a maioria dos meus colegas, amigos e amigas eram brancos e brancas. Isso nunca foi um acidente.
De 2018 para cá isso mudou radicalmente. Fiz muitos amigos no Afro-Resistência e notei que isso aconteceu também com vários outros membros do nosso grupo. Existem agora “amizades orgânicas”, de pessoas que antes nunca tinham tido amigos negros ou tinham tido poucos amigos negros no passado. O Afro-Resistência, além de um grupo social, também está focado em ativismo e black money. Vários membros do grupo trocam prestação de serviços, compartilham trabalhos e outras atividades.
Para alguns leitores pode parecer que estamos nos “segregando”, mas, na verdade, estamos apenas nos libertando da segregação estrutural imposta pela branquitude brasileira. No Brasil, especialmente entre as classes média e alta, é comum você ir a uma festa, restaurante ou eventos onde não tenham negros – por vezes há um ou dois . Ano passado, quando visitava o Brasil, fui à festa de uma amiga para 400 pessoas onde tinham apenas dois negros: a faxineira e eu. Mas poucos questionam “por quê?”.
No momento, o Afro-Resistência tem grupos no Facebook e no WhatsApp, que estão abertos exclusivamente para pessoas negras que já estão morando na Austrália. No entanto, quem estiver no Brasil e tiver interesse em nos acompanhar, é só nos seguir no Instagram @afroresistenciaau. Fiquem atentos para novas atualizações. Muito mais estar por vir. Isso é somente o começo. Ubuntu.
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