Das 16 entrevistadas nos circuitos do Pelourinho e do Campo Grande, todas são mães e complementam a renda familiar com os ganhos na festa
Na sexta-feira de Carnaval (9/2) em Salvador, entre às 19h e 21h30, caminhei pelos circuitos Batatinha (Pelourinho) e Osmar (Campo Grande), entrevistando mulheres que atuam como vendedoras ambulantes na festa. Visualmente, elas são maioria nesses circuitos, vendendo comidas, bebidas, doces e acessórios. Conversei com 16 profissionais, que compartilharam seus desafios, e todas são mães.
Racismo, humilhação e vulnerabilidade são alguns casos relatados por essas trabalhadoras que enfrentam adversidades para complementar a renda, como é o caso de Albani Santos, 48 anos. “Já cansei de virar noite dormindo na rua com meus filhos. A gente ia no posto de gasolina, levava um balde, ou ia no banheiro químico e trancava [pra tomar banho]”, relata a doceira que utiliza os ganhos na festa para quitar dívidas e custear a educação escolar dos filhos.
Isopor: chuveiro e abrigo
Entre as situações mais delicadas que elas enfrentam, um dos destaques dos relatos é a manutenção da higiene. Uma das trabalhadoras (que preferiu não se identificar), disse que já tomou banho com água do gelo derretido do isopor, porque não havia posto de suporte para se higienizar. “A gente espera o banheiro químico ficar limpo, leva um balde, e toma lá dentro”, expõe.
Em outro relato, o isopor serviu de abrigo para a filha de Suzana Conceição, 50 anos. “O mar quando sobe [na Barra], passa o muro. E eu já tive que botar minha filha dentro do isopor pra se proteger do frio e da chuva, porque quando chove, você já viu como fica aquilo ali?”, narra a microempreendedora que está comercializando abará em um carrinho de vender milho. Escolheu essa opção, porque acha mais difícil lucrar com cerveja.
“Os foliões querem muito barata [a cerveja]. Não querem pagar o valor de nós, ambulantes, e a gente tem dificuldade de manter o valor”, pontua. “Nós recebemos um kit, mas tem um porém, que é a dificuldade de manter o valor que eles passam. Num bar, num restaurante, num evento na Arena Fonte Nova todo mundo paga, porque com a gente é isso? Na verdade, nós somos discriminados”, desabafa Suzana.
Racismo e humilhação
E a discrminação ocorre de forma explícita. Ao trombar num turista, acidentalmente, Sandra dos Santos, 45 anos, gravou o ocorrido em sua memória. “Uma vez eu me esbarrei com meu isopor com um gringo, e ele disse ‘sai, sua negrita!’. Eu fiquei muito triste, não me esbarrei porque quis. Eu nunca me esqueci dessa cena”, reconta a trabalhadora, que também se queixa da forma como alguns fiscais de ambulantes as tratam.
Essa reclamação se apresenta em quase todas as falas. “São muitos desafios. É rapa tomando mercadoria, é muita chuva. Mas a gente segue levando a vida. Mulher trabalhadeira, todo mundo dá valor”, declara Maria Nalva que trabalha há 35 anos comercializando churrasco e bebidas na Praça Castro Alves, ponto de encontro de trios na folia baiana. A profissional diz que a renda ajudou no custeio da universidade dos filhos.
Jornadas triplas
Ser mãe solo é um desafio de trabalho multiplicado. E quando se é avó, o obstáculo se eleva e não sobra tempo pra descanso. É o caso da professora do EJA (Ensino para Jovens e Adultos), Edileusa Ribeiro, 48 anos. “Eu tô aqui por causa do recesso. Dia 14 encerra aqui e dia 15, de noite, já estou na escola. Não tem nem descanso, porque todo final de semana tenho que fazer o plano de aula. É um sacrifício”, enfatiza.
Algumas dessas mulheres trabalham nessa lida desde tenra idade. “Eu não tinha horário certo pra trabalhar, às vezes eu queimava aula, já perdi de ano por conta de ter que ajudar minha avó e minha mãe”, conta a trancista Valdijane, 36 anos. Ela cresceu ajudando a família a “pôr os mantimentos em casa”, e afirma que as mulheres ditam as rédeas da sociedade. “Queriam que a gente ficasse atrás do fogão, mas hoje quem manda no mundo é a mulher”, defende.
Sendo assim, “as donas do mundo” merecem e precisam de uma atenção maior para a sua lida no Carnaval, sobretudo por parte do município. Ainda que existam pontos de apoio, são insuficientes para os mais de 7 mil ambulantes que trabalham nos circuitos, e são parte essencial da festa. E cabe a nós, foliões e foliãs, colaborarmos com o corre. Afinal, com todo esse background, repense na hora em que for pechinchar a latinha de cerveja!
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