Carolina Maria de Jesus será retratada como ícone de um Brasil insubmisso em exposição

“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora”, escreveu Carolina Maria de Jesus em Quarto de despejo, seu primeiro livro, que chegou às livrarias há exatos 61 anos, em 19 de agosto de 1960. A escritora vai ganhar a partir de 25 de setembro uma exposição no Instituto Moreira Sales (IMS) que promete retratá-la em sua grandeza: escritora, compositora, mãe, ativista do antirracismo e de lutas pelo letramento e pela moradia.

Ocupando dois andares do IMS Paulista, outros espaços do centro cultural e até mesmo a Avenida Paulista, a exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros apresenta a trajetória e a produção da escritora, reforçando a importância de seu projeto literário e seu legado como intérprete do país, além de ressaltar aspectos pouco conhecidos. Dividida em quinze núcleos temáticos e com uma mescla de diferentes linguagens, a mostra traz aproximadamente 300 itens, entre fotografias, matérias de imprensa, vídeos e outros documentos, demonstrando como Carolina interpretou as contradições, a política e a desigualdade do Brasil de sua época.

Obras de cerca de 60 artistas, entre selecionadas e comissionadas, dialogarão com os temas investigados por Carolina. O antropólogo Hélio Menezes e a historiadora Raquel Barreto ficaram responsáveis pela curadoria, assistidos pela historiadora da arte Luciara Ribeiro e pelo trabalho de pesquisa da crítica literária e doutora em letras Fernanda Miranda. Eles prometem retratar uma Carolina sem lenço na cabeça e afiada nas palavras, como era.

Cadernos

Dois cadernos originais da autora, desde 2006 sob a guarda do IMS, servem como fio condutor. Em 1975, esses manuscritos, então intitulados Um Brasil para os brasileiros, expressão atribuída a Ruy Barbosa, foram entregues pela autora à pesquisadora Clélia Pisa. Após o falecimento de Carolina, foram editados na França e publicados em 1982 com o título Journal de Bitita. Em 1986, a obra foi traduzida diretamente do francês e lançada em português como Diário de Bitita. Como boa parte da produção da autora, em seu processo de edição, o livro sofreu alterações que desrespeitaram o texto, a começar pela modificação do título.

Na obra, Carolina rememora sua infância e juventude na cidade de Sacramento (MG), no período pós-abolição, enquanto reflete sobre as condições socioeconômicas da população negra. “Em Um Brasil para os brasileiros, a autora elabora narrativas biográficas e autoficcionais ao rememorar sua infância, apresentando pontos de vista de personagens que foram apagadas das narrativas oficiais escritas, majoritariamente por autores homens e brancos”, comenta a equipe de curadoria sobre a importância do livro que empresta seu título à exposição. “Carolina faz assim um interessante contraponto aos cânones literários vigentes no Brasil”.

Em letra e imagem

Na exposição, os textos de Carolina e sua própria letra aparecem em diversos formatos, como manuscritos, projeções na parede e lambe-lambes. Durante a pesquisa foram consultados os originais da autora, em sua maioria depositados no Arquivo Público de Sacramento, para mostrar a voz e a escrita originais de Carolina, tendo em vista que os livros da autora publicados até recentemente passaram por modificações e alterações.

O público também encontrará fotografias pouco conhecidas da artista. Há imagens em que Carolina aparece sorrindo, usando roupas elegantes, como sobretudos e colares de pérolas, com o cabelo à mostra. O conjunto traz, por exemplo, um registro de Carolina no aeroporto, em 1961, antes de embarcar para o lançamento de Quarto de despejo no Uruguai. Em outras fotos ela aparece em um programa de televisão com os filhos, em 1962, ou, ainda, na foto abaixo em que aparece utilizando um vestido que confeccionou especialmente para o Carnaval daquele ano.

Carolina Maria de Jesus. 23 de fevereiro de1963. Foto de Sidney. Arquivo Público do Estado de São Paulo/Última Hora

Ao reunir essas fotografias, a exposição procura apresentar uma nova visualidade de Carolina Maria de Jesus, em contraponto às imagens mais difundidas que a retratam quase sempre de modo perfilado, com uma expressão séria e cabisbaixa e os cabelos cobertos por um lenço, que acabou se tornando um símbolo associado à escritora.

Poéticas em diálogo

Para ampliar essa narrativa visual, a equipe de curadoria convidou Antonio Obá para conceber um novo retrato de Carolina, intitulado Meada, um dos principais destaques da exposição. Além de Obá, um grupo de dezenas de artistas participa de Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros. Distribuídas por todos os núcleos expositivos, as obras dialogam tanto com os documentos e imagens exibidos quanto com os temas abordados pela artista, como o processo de escrita, a maternidade, as relações sociais, a ocupação de espaços públicos e o direito à cidade.

Na avenida Paulista, perto da entrada do IMS Paulista, ficará a escultura de bronze Uma palavra que não seja esperar (2018), de Flávio Cerqueira, representando uma menina carregando uma pilha de livros na cabeça. Em diálogo, em uma pilastra no térreo do IMS, haverá um poema de Carolina, “Quando eu morrer”, reproduzido do original na caligrafia da autora. Hélio Menezes e Raquel Barreto comentam a importância do texto: “Nesse poema, Carolina indica como gostaria de ser lembrada postumamente, ‘não digam que fui rebotalho’, ela afirma. O texto foi uma espécie de guia para a pesquisa curatorial de toda a exposição.”

Quarto de Despejo

Seu livro de maior sucesso, Quarto de Despejo foi escrito em forma de diário e relata o cotidiano da autora na favela do Canindé, em São Paulo. A obra chegou ao topo das listas de mais vendidos, superando autores já consagrados como Jorge Amado e Jean-Paul Sartre, e em seguida ganhou o mundo, sendo publicado em 46 países.

O IMS lembra que além do Quarto de despejo, a autora, falecida em 1977, lançou em vida Casa de alvenaria (1961), Pedaços da fome, cujo título original era A felizarda (1963), e Provérbios (1963). Nenhum teve a mesma recepção da obra de estreia e Carolina acabou voltando ao ostracismo, só começando a receber o devido valor muitos anos depois da morte. Ao longo de sua trajetória, cuja produção está em grande parte presente em cadernos manuscritos ainda não publicados, escreveu também poemas, crônicas, peças de teatro e letras de música, a maioria ainda inédita.

Múltiplas Carolinas

A relação de Carolina com a imprensa brasileira e internacional também estará em foco na exposição. A pesquisa demonstra que a escritora teve sua primeira publicação em jornais já na década de 1940, quase 20 anos antes da famosa matéria do jornalista Audálio Dantas. Será abordado ainda o papel da mídia na construção de um imaginário estereotipado em torno da autora.

Após o lançamento de Quarto de despejo, grande parte da imprensa passou a retratar Carolina Maria de Jesus não como uma escritora, mas como uma personagem ambígua, “a escritora favelada”, tratada como objeto de curiosidade em matérias, entrevistas e fotos sensacionalistas. A exposição mostra como esse tratamento vai se alterando ao longo do tempo, com a diminuição da cobertura sobre a artista. O conjunto traz reportagens publicadas em veículos como O Cruzeiro, Folha de S.Paulo, Última Hora e New York Times.

Outro dos núcleos da exposição é dedicado à maternidade. Carolina foi mãe solo de três filhos. Suas reflexões sobre a condição — expressas em frases como “Dia do papai. Um dia sem graça”, de Quarto de despejo — reverberam nas discussões de hoje. A mostra trará registros da escritora com seus filhos, incluindo três fotos raras, que pertenciam à própria Carolina.

Além da produção literária, Carolina compunha canções, cantava, tocava violão e costurava. Essa faceta múltipla da artista, ainda pouco conhecida pelo público, será retratada no 9º andar do IMS Paulista. Em 1961, por exemplo, um ano após lançar Quarto de despejo, a escritora gravou o disco homônimo, com músicas de sua autoria.

Capa e contracapa do LP Quarto de despejo )1961) (Acervo IMS)

Composto por 12 faixas, o raro LP, que pertence ao Acervo José Ramos Tinhorão, sob guarda do IMS, será exibido. O público também poderá ouvir as canções do álbum, que versam sobre o cotidiano e relações de classe e gênero. Trabalhos do compositor e pintor Heitor dos Prazeres, nome fundamental do samba no Brasil, também estarão na galeria.

A exposição termina com vídeos e trabalhos que reforçam o impacto da obra de Carolina na atualidade. “Carolina tornou-se um símbolo de resistência para os movimentos negros contemporâneos, referência para vertentes do feminismo negro, para a literatura de autoria negra e periférica”, afirma a curadoria. “Um ícone de um Brasil insubmisso, que colocou em cheque um projeto de modernidade excludente, que era moldado quando a autora lançou seu primeiro livro”.

Para além das galerias

Em cartaz até janeiro de 2022, Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros contará com uma ampla programação de atividades paralelas. Dentre outros eventos, será promovida uma mostra de cinema idealizada pelo curador e pesquisador Bruno Galindo. Também será lançado um catálogo da exposição, acompanhado por textos críticos. O IMS também está produzindo um site especial dedicado à escritora, ainda sem data prevista de lançamento, editado pela crítica literária Fernanda Miranda, que trabalhou na pesquisa da mostra.

Uma palavra que não seja esperar, bronze de Flávio Cerqueira (Foto de E. G. Schempf)

Fonte do texto: IMS

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Redação

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