O retrato do negro feito por Hollywood e o filme Joker

Por Guido Melo*

– Eu não acredito que ela vai beijar a negona!

Assim, desta forma, disse meu amigo branco na minha casa com toda a minha família negra presente.

Estávamos assistindo ao filme Ghost e, na cena, a personagem interpretada por Demi Moore iria beijar o fantasma do personagem de Patrick Swayze. O fantasma estava possuindo o corpo de Oda Mae Brown (Whoopi Goldberg). Ou seja, o beijo de Demi Moore, na realidade, foi na Whoopi Goldberg… A cena é famosa e fácil de achar no Youtube.

Interessante que enquanto eu via uma cena humana de amor eterno, meu então amigo branco via uma cena totalmente racializada e isso lhe causou nojo, pois ele foi educado durante toda a sua vida para reagir dessa forma. O fato de estar numa casa de negros e ter um amigo negro não amenizava nem diminuía seu racismo.

Essa situação foi obviamente chocante e marcante, como todos os atos de racismo são. Não importa o quanto você se prepare para esses atos, quando eles ocorrem, vem aquele gelo na barriga, uma raiva incontrolável. E quando você pensa numa resposta satisfatória, já é tarde demais.

Minha relação com o cinema

Eu passei grande parte da minha adolescência assistindo a todos os tipos de filmes. No Brasil dos anos 90, todas as segundas-feiras a principal emissora de TV do país tinha em sua programação ‘’Tele Quente’’. Onde, muito antes de Netflix, filmes eram exibidos com exclusividade. Pode parecer algo quase jurássico, mas as famílias se reuniam para assistir aos blockbusters da época, e na minha casa não era diferente.

Filmes assustadores, como Sexta Feira 13, dançantes, como Curtindo a Vida Adoidado, ou para uma família negra como a minha, filmes com situações raciais confrontantes, como Ghost. Aos 14 anos comecei a matar aulas para ir ao cinema. Às terças e quartas, a Cinelândia no Rio de Janeiro oferecia filmes por menos da metade do preço. E juntando moedas aqui e ali não era difícil conseguir dinheiro para as entradas.

Eu tinha heróis: homens como Hamil, J Fox, Nelson, Esteves, Dempsey e Cusack. E mulheres como Hamilton, Bullock & Ringwood. Para ser honesto, com exceção apenas de Murphy em Um tira da pesada, todos eram brancos.

Eu não entendia no momento, mas eu estava sendo manipulado por Hollywood para aceitar uma doutrina binária e maniqueísta:

Branco = Bom (mocinho)

Outras raças = Mau (perigoso)

Então, como eu consegui conectar Tyler Durden, D-fens, Travis Bickle com o Joker? Vamos lá:

Existe uma longa tradição no cinema de anti-heróis brancos abandonando suas responsabilidades como cidadãos. Quando o Joker aponta para nós, como sociedade, e nos acusa de sermos responsáveis por suas falhas pessoais, justificando assim sua raiva, seu apetite por destruição e Niilismo, ele só está seguindo essa longa tradição.

Personagens negros no cinema

Eu não sou diretor cinematográfico, porém sei exatamente como geralmente são os personagens negros no cinema e como fazê-los. Existe um personagem negro muito comum, que não tem o privilégio de ser ‘’normal’’ ou mediano. Podemos notar que filmes como 12 anos de escravidão, Mandela, Cidade de Deus, Duelo de Titãs, À procura da Felicidade, Um limite entre nós e Estrelas além do tempo tem algo em comum: uma pessoa negra é oprimida, assassinada, humilhada por todos à sua volta (geralmente homens brancos) e, no fim, sua humanidade (mesmo sofrendo atos desprezíveis) tem que ser maior que a do opressor.

No filme Duelo de Titãs, por exemplo, o ator Denzel Washington faz o papel do professor/técnico de Futebol Americano, que apesar de mais qualificado e com maior educação acadêmica, tem que trabalhar sendo comandado por um técnico branco. O personagem (que é baseado em uma história real) sofre atentados de morte em sua própria casa, recebe bananas dos técnicos adversários e, apesar de tudo isso, se torna amigo de vários de seus detratores num ato de mais alta humanidade e altruísmo.

Que lindo! Que filme! Diriam, certo? Grada Kilomba escreve que essa expectativa de ser super-humano é desumana e colonialmente racista. Histórias similares se repetem na maioria dos filmes hollywoodianos sobre negros. Tudo o que temos que fazer é ser ‘’super-humanos’’. Estudar mais, trabalhar mais, lutar mais pelos nossos direitos e, como consequência, talvez no fim a gente receba o que realmente merece.

Uma mentira que é contada e recontada para nós negros desde os primórdios de Hollywood. Uma falácia maquiavélica e com requintes de crueldade. Em Estrelas Além do Tempo, uma das personagens principais, Dorothy Vaughan (Octavia Spencer), tem sua entrada continuamente rejeitada na única biblioteca da cidade. Os livros que ela precisa para ensinar suas crianças ficam no ‘’lado branco’’ da biblioteca. Nesse mesmo filme, também é citada uma linha que confirma como o racismo se adapta e funciona de várias maneiras: ‘’Toda vez que a gente tem alguma chance de sucesso, eles mudam a linha de chegada.’’

O racismo causa cegueira nos brancos. O racista prefere morrer ao ver nossa humanidade. Falando nisso, voltemos ao Filme Joker e o crescimento do homem branco que se sente mal-entendido e oprimido.

O anti-herói branco

A premissa de um homem branco intelectualmente medíocre e pobre, tentando sobreviver numa sociedade que o exclui já foi utilizada em outro filme há 40 anos. Foi em 1976 (ano em que eu nasci, diga-se de passagem) e o filme se chama Taxi Driver, dirigido por Martin Scorsese. O personagem principal Travis Bickle (Robert De Niro) tem todas essas características. Um personagem periférico e perigoso que em sua trajetória vive uma relação amorosa com uma menor de idade, Iris Easy Steensma (interpretada por uma bem jovem Jodie Foster). A não ser que você seja um psicopata, fica difícil ter empatia com um molestador de crianças, racista e que quer destruir toda a sociedade ao seu redor, certo?

As interações de Travis Bickle com pessoas negras e mulheres são clássicas autorreflexões de auto ódio. Ele odeia essas pessoas pois se odeia por não ter (o que ele considera) seus direitos assegurados.  Ele se vê superior como homem branco e o ato racista é um ato de fuga da realidade. Realidade que o coloca ‘’apenas’’ como um cidadão. Apesar de tudo, Martin Scorsese me parece claro em seu objetivo de fazê-lo uma pessoa abjeta e um sociopata.

Pulamos para 1993 e outro anti-herói branco salta nas telas. Esse é o ano após a eleição do presidente democrata americano Bill Clinton. Apesar de hoje conhecermos muito bem quem é Clinton, nesse momento histórico ele representava um novo horizonte para mulheres e negros americanos, o que aos olhos de muitos homens brancos significava uma perda de território. O filme é Um dia de Fúria e William Foster (Michael Douglas) é o branco ‘’injustiçado’’ da vez.

Foster está tendo um dia daqueles. Preso num engarrafamento, ele abandona seu carro em Los Angeles e anda toda a cidade para chegar ao aniversário de sua filha (com sua ex esposa). No filme, todos os seus antagonistas são caricaturas extremas e racializadas. Ele encontra uma gangue de latinos tão exagerada que parece mentira. Conversa com trabalhadores brancos sobre teorias da conspiração e sobre governo mínimo e neoliberalismo. Ele aprende a atirar usando uma bazuca com uma criança negra de 12 anos. Essa cena de inocente não tem nada. Ela vende a ideia de que negros (mesmo muito jovens) são extremamente perigosos e violentos por natureza.

Lembro-me de assistir a essa cena e achar engraçado que um menino negro pudesse ser tão mais esperto que um homem velho branco, eu via um comentário social sem maiores intenções…. Como eu era inocente. Como eu estava envolvido. O adolescente que eu era não enxergava todo o ódio que a cena produzia. Nossa desumanização sendo exposta na tela do cinema para todos verem e aprenderem.

Em outra cena, William Foster explode uma construção usando a bazuca, e nesse momento somos levados a achar que a criança negra de alguma forma é a vilã. Cenários como esse alimentam o racismo fazendo-o se perpetuar pelos meios de comunicação. Hollywood desde os primórdios lucrou e ainda ganha com medos e versão racializadas de minorias. Consequentemente não há interesse imediato em desmantelar o racismo estrutural.

Numa cena ainda mais racista, Foster violentamente destrói uma loja de conveniência pela simples razão de achar os preços cobrados por seu dono (um imigrante coreano) abusivos, o que na sua opinião constitui crime de extorsão. Ironicamente, depois de completamente destruir todo o estabelecimento, William Foster extorque o funcionário a lhe vender uma lata de coca-cola pela metade do preço anunciado. Senti uma dor no estômago ao rever essa cena na pesquisa para escrever este artigo.

Nós estamos tão acostumados a ter pena do homem branco que na época não me assustava que a própria sinopse do filme nos encorajava a torcer por ele. A ter empatia por um homem claramente sem razão. Lembro-me de assistir ao filme como uma história de David versus Golias, de um homem ‘’comum” lutando por todos nós. Hoje percebo que ele lutava por uma coisa apenas: pela continuação da supremacia branca.

Personagens homem e brancos são constantemente aplaudidos por seus comportamentos violento, criminoso e/ou hostil. Suas narrativas são vendidas como narrativas anarquistas ou de luta de ‘’oprimidos’’ contra o sistema. Em Prenda-me se for Capaz, Frank Abagnale (Leonardo DiCaprio) comete todos os crimes de fraude imagináveis e no final é visto como um herói. Como consequência, ele recebe uma pena de apenas quatro anos numa prisão federal de alto nível e eventualmente ganha de presente um emprego muito bem remunerado no FBI. Como você, leitor, acha que seria o tratamento caso o criminoso fosse negro? Longe da ficção, em 1984, no Alabama, um negro de 22 anos foi preso por roubar 50 dólares e passou 35 anos numa prisão. Dois pesos e duas medidas. Por quê?

Outro filme que foi influente em minha formação se chama Clube da Luta (1999). Este é talvez o maior exemplo da manifestação de dupla personalidade do anti-herói branco. O personagem do ator Edward Norton (narrador) sente que perdeu o controle de sua vida e se sente emasculado em seu trabalho e vida social. O narrador acidentalmente conhece Tyler Durden (Brad Pitt), um misterioso vendedor de sabonetes. Os dois formam uma amizade surpreendente que eventualmente se torna um problema para o narrador. O personagem de Norton é para mim o clássico homem branco mediano, com um emprego estável, porém, infeliz. Sua infelicidade proveniente de uma alta e infundada expectativa de que sua vida fosse ainda melhor economicamente e influencialmente falando.

O que fica evidente nesses filmes acima citados é que o homem branco vê o mundo de forma binária e reducionista. Se ele não está em total controle de tudo, algo deve estar errado. Eles acreditam que trabalhar com mulheres, negros, asiáticos e latinos fazendo a mesma função é uma afronta à sua posição ‘’natural’’ de domínio. Ou seja, brancos pensam: se o sistema não me coloca no topo, algo de muito errado deve estar acontecendo e, consequentemente, o sistema que não funciona deve ser destruído.

Esse é o poder de Hollywood. Quando eu vi esses filmes pela primeira vez, eu estava totalmente alinhado aos anti-heróis brancos. Eu os via como anarquistas. Porém, na prática, essa destruição do sistema pregada por todos os protagonistas citados nesse artigo afetaria na maior parte minorias… Ou seja, eu estava torcendo contra mim mesmo.

O homem branco é colocado como messias. Como um porto seguro no momento de caos. Baseados nisso podemos então descrever eleições como a de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro como o enredo do Clube da luta. Vejamos bem, Tanto Trump como Bolsonaro são como o Tyler Durden em Clube da Luta, homens brancos desvirilizado e com medo de perder seu status na sociedade.

O homem branco escolhe o niilismo a mera possibilidade de ser tratado em par de igualdade com pessoas que eles consideram menos humanas que eles. Muitos nunca aceitaram que somos iguais que merecemos dignidade e tratamento justo. Oportunidade e reparação pelos atos covardes a nos impostos por séculos. Homens brancos tanto nos filmes como na vida real se colocam como vítimas , porém eles são em sua grande maioria os agentes da destruição.

Joker

No filme Joker, somos desde a primeira cena influenciados a ter empatia pelo personagem principal interpretado por Joaquin Phoenix (Arthur Fleck). Ele se sente excluído por uma sociedade que ele acha que o trata mal e que não o respeita. Na verdade, ele é oprimido por um grupo de homens ricos e brancos. No prédio onde vive, muitos dos moradores são negros, o que o filme mostra tentando caracterizar pobreza.

As interações de Arthur Fleck com pessoas negras são com mulheres. Essas mulheres são propositalmente suas antagonistas de uma forma ou de outra. Há uma cena em que ele diz para sua assistente social – ‘’Você não se importa comigo. Nenhum de vocês se importa….’’ ( poderia ser para o sistema , mas eu interpretei como ele dizendo isso para a população negra em geral) enfim, tudo muito dúbio.

Misoginia recheada de racismo, uma das premissas da cultura Incel (homens que impõe o celibato e rejeitam mulheres). Para ser franco, eu entendo o Joker como um filme com objetivos comerciais, que tem como missão vender o maior número de ingressos possível. Para fazê-lo, ele tenta capturar o ethos do homem branco moderno. E na minha opinião, o filme é bem-sucedido nisso. Ele vende a ideia do homem branco oprimido que se sente encurralado e, que sem mais nenhuma opção, decide destruir e assassinar. Niilismo sendo a única escolha possível.

Como num último suspiro, o filme e o homem branco gritam:

  • Olhem para nós!
  • Nós também estamos sofrendo.
  • Por favor, nos entendam.
  • Por isso votamos contra a democracia.
  • A culpa é de vocês! Vocês nos fizeram fazer isso!

Assistir a esse filme como homem negro e compactuar com sua narrativa seria aceitar que o opressor tem razão e, consequentemente, aceitar o meu fracasso. Maya Angelou disse: o que é verdade em algum lugar, é verdade em todos os lugares. Pessoas que acreditam ou estão em situação de opressão e irão lutar com todas as forças para sair dela. Não existe nada mais poderoso que alguém que luta por sua própria liberdade.

Homens brancos não estão sob ataque e nem sob nenhum tipo de opressão. Porém, apesar de fatos e dados provando essa realidade, muitos homens brancos se sentem assim, encurralados. E sem razão para tal. Concordo que precisamos entender por que eles se sentem assim, para realinhar o curso da humanidade. Só assim poderemos lutar de forma crítica contra essa falsa narrativa.

Se pensarmos bem, negros acima citados mostram que vários avanços foram feitos quando trabalhamos em conjunto como humanidade. Para isso precisamos todos nos ver como humanos que somos. O que muitos brancos não conseguem fazê-lo. Tenho grande ressentimento por todo racismo sofrido na minha vida e no cinema. Eu acho até razoável que assim seja, isso não me impede de todos os dias humanizar todas as pessoas que eu encontro. Faço questão de ressaltar que não estou advogando ou sugerindo nada que não seja o respeito mútuo, mas fica a pergunta: Será que é tão difícil nos humanizar e nos individualizar também?

*Empresário e escritor. Sigam-o no Twitter e no Instagram

 

 

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Guido Melo

Guido Melo é negro, nordestino e está radicado na Austrália desde 2003. Ele é um autor multilíngue afro-brasileiro-latino, poeta e facilitador de oficinas literárias baseado em Naarm (Melbourne). Atualmente cursando um Bacharelado em Letras e Mídias Digitais na Victoria University, seus textos podem ser encontradas nas revistas Meanjin , Overland, Kill Your Darlings, Peril, Colournary Magazine, Mantissa Poetry, Ascension Magazine, SBS Voices, SBS Portugues, Poesia Cordite dentre muitas outras publicações. Guido é integrante do Movimento de Alfabetização Sweatshop, colunista do Negrê e do Guia Negro News alem de ser colaborador das antologias Growing Up African in Australia (Black Inc., 2019) e do Livro Racism: Stories on Fear, Hate & Bigotry (Sweatshop, 2021).

Artigos: 6

2 comentários

  1. Só um adendo, em nenhum momento do filme táxi driver, o protagonista tem intenções maliciosas, com a adolescente íris!. Muito pelo contrário, ele a ajuda salvando – a dos cafetões.

  2. Irmão, essa foi a mais equivocada e esclerosada visão sobre Coringa e Taxi Driver. Eu não sei de onde você tirou essa de que os personagens são racistas ou de que são incels misóginos, incels são os caras que o Coringa mata no trem. Os filmes retratam uma realidade, uma pessoa que não consegue ver valor e sentido na vida e na sociedade já que ela não liga para ele, não tem nada a ver com o fato de ele ser branco, nem homem, e sim de ser alguém, uma pessoa, sendo que você ainda colocou o niilismo no mesmo barco do racismo, absurdo.

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