Quando se trata do erotismo, a incontinência do sentimento dimana como leite que, esquecido no fogo, derrama. É difícil delimitar a potência e multiplicidade de expressões que esse tema evoca. A coletânea ‘Erótica – Versos Lésbicos’ é a prova escrita dessa ideia. A obra lançada em 2022 pelo selo Cassias Imperiais, reúne 80 poetas lésbicas e bissexuais de todos os cantos do país, mapeando a cartografia poética de desejos, dissabores, corporeidades e amores dessas mulheres que deixaram as vivências transbordarem pro papel.
Essa enchente poética resultou num “bom problema” para as organizadoras Adriele do Carmo e Daniela Wainer, escritoras que também estão presentes no livro. A ideia inicial, quando foi aberta a chamada online, era selecionar 30 inscrições. Contudo, “as poesias vieram tão fortes, candentes, íntimas e honestas que tomamos a decisão de incluir todes es incrites”, segundo as organizadoras. Decisão assertiva para, como numa lente grande-angular, captar uma imagem maior do mapa lesbo-bi-erótico literário do Brasil.
O livro é um desdobramento do Sarau Erótica, projeto de Adriele do Carmo, iniciado de forma online em plena pandemia de Covid-19. Num momento de distanciamento de corpos e sublimação de desejos, mulheres reuniam-se virtualmente para poetizar o erotismo. Eram raras as edições em que homens participavam, com o objetivo de que o espaço fosse confortável o suficiente para as participantes navegarem entre o romântico e o pornográfico.
E nessas marés de lágrimas, suores e gozo, quem lê nada, boia e também se afoga. É o fazer amor das mulheres, ato que transcende o sexual e tem potência de cura: “libertou minhas águas de um dique qualquer” (Oluwa Seyi). São corpos que trazem experiências pregressas e se abrem para desembocar em novas. São corporeidades múltiplas, gordas, magras, cis e trans. São os dedos, co-protagonistas que não apenas escrevem, mas atuam ávidos pela busca do prazer “diante de uma mulher aberta” (Ingrid Limaverde) e seus diversos encaixes.
A poética torna-se um modo de romper a barreira lesbo-bifóbica da vivência social; quando não se livrando desta num gozo proibido onde “constantemente cercadas/ por um sistema que veda até o grito” (Débora Calmon), denunciando-a na ênfase versada de “não vou viver escondida/ não quero ser repreendida” (Nina Maria). Num confronto ao silenciamento, ergue-se a afirmação e repetição contundente de ser quem se é em ‘Eu sou uma lésbica’ (Sarah Sanches), remando contra a maré da morte e do apagamento por meio do ato de amar.
O amor é versejado na coragem do beijo dado em público na mesa de um bar em ‘Madu’ (Germana Andrade), no beijo insistentemente lembrado em ‘Te beijo por onde você for (Carmen Cavalheiro), no beijo que poderia não ter sido “se não tivesse dado o match” (Bia Blackman), ou no beijo que poderá não vir em ‘A solidão da mulher negra’ (Bárbara Reis). A saliva está nas linhas e letras, obtida e buscada.
Erótica excita, expõe e exubera o amor, sobretudo. O livro tem rodado as capitais do Brasil em lançamentos que já passaram por Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. E no decurso dessas águas misturadas a poesia nos lembra que as escritoras navegam, mas ancoram suas existências e palavras em terreno firme. Afinal, “lésbicas são árvores fortes que não caem durante o temporal” (Maria Clara Araújo Oliveira).
Erótica – Versos Lésbicos
Adriele do Carmo e Daniela Wainer (Org.)
Selo Cassias Imperiais, 2022
258 p.
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