Worldpackers é para negros?

“Trabalhar de forma voluntária em troca de hospedagem e alimentação, a premissa da Worldpackers é ancorada em uma dor ancestral do povo negro”. A afirmação é de Guilherme Soares Dias, idealizador do Guia Negro, publicada em seu Instagram, o que gerou repercussão e discussão sobre a experiência do turismo voluntário oferecido por algumas plataformas, como a Wolrdpackers, e por agências de intercâmbio. A provocação parte de uma falta de compreensão das bases do turismo sobre como algumas vivências podem impactar de maneiras diferentes os viajantes pretos – em relação às vivências brancas, devido a uma estrutura social construída sob moldes racistas.  

Em sua postagem, Guilherme ainda contextualiza, explicando que antepassados pretos foram obrigados a trabalharem de graça, de maneira forçada por muitos séculos e quando veio uma pseudo abolição, a comunidade negra ficou a margem, sendo destinada a ela subempregos que muitas vezes a contrapartida era comida e hospedagem. Eu, Joyce, testemunhei histórias de mulheres pretas nordestinas cujo molde de trabalho era somente este, o trabalho doméstico, no qual o pagamento era um quarto na casa dos patrões e as refeições – e sabemos que a insegurança alimentar acomete justamente essa camada da sociedade e, portanto, a branquitude se vale destas frestas para impor um sistema escravagista.  

Logo, o voluntarismo praticado no turismo branco aciona gatilhos indesejáveis para muitos negros que gostariam de conhecer determinados lugares no país e no exterior – e não encontram outras formas baratas mais disponíveis e confortáveis. Além da ferida histórica relatada acima, há outras questões que precisam ser pensadas em um contexto mais racializado, como o receio do racismo, da xenofobia e machismo em solo estrangeiro, por exemplo.

A diferença no percentual de viajantes negros, que é consideravelmente menor do que os de viajantes brancos por falta de oportunidades e condições financeiras, é visível até para a Worldpackers que ao ser convidada para o debate na rede social trouxe dados como “reconhecemos que o número de pessoas negras inseridas no ramo de viagem é muito menor do que o de pessoas brancas e que o racismo estrutural existe em todas as camadas da sociedade (…), a Worldpackers nasceu para tornar as experiências de viagem, além de mais acessíveis, em oportunidades de desenvolvimento para pessoas do mundo todo (…), por isso, oferecemos experiências colaborativas em que as pessoas podem trocar suas habilidades por acomodação – com o objetivo de compartilhar diferentes culturas e aprendizados”.  

No entanto, ao ser questionada sobre quais ações foram pensadas para aumentar a diversidade e contribuir para a inserção da população negra em experiências turísticas (e condizentes com a realidade destes viajantes), a plataforma afirmou que ainda não havia elaborado iniciativas necessárias que revertessem o cenário atual. Por isso, é preciso ressaltar que o afroturismo vem exatamente na contramão, com o fomento do turismo negro, que abre possibilidades para que mais pessoas possam viajar, se sentindo pertencidas em abordagens com uma ótica mais voltada para a historicidade preta, como propõe o Guia Negro, guias independentes e algumas plataformas como Diaspora.Black e Travel Noir. 

A troca de ideias gerada no Instagram trouxe apontamentos importantes sobre a questão.

Confiram: 

@pretoviajante: Não critico quem faça, mas nunca foi minha praia. De repente já estava enraizada em mim essa questão, mesmo sem entender perfeitamente!! 

@moniquecarrasco: Não é meu lugar de fala, porém agradeço pelo conteúdo. Você aborda questões que nunca passaram pela minha cabeça, e acredito ser importante refletir sobre e entender seu sentimento/ponto de vista.  

@kleriene: Eu estava vendo um viajante branco falando sobre viajar mais barato com esse (sic) programas de voluntariado e aquilo me incomodou e agora lendo entendo o pq pensei nisso q vc disse e tbm sobre esse voluntarido (sic) e onde e pra quem? 

@clauporai: Oiiii Guilherme venho aqui deixar o meu relato pois já fiz esse tipo de trabalho. No meu caso a experiência foi boa, pois eu encontrei um anfitrião que super me acolheu que eu precisava me “reenvientar” o meu voluntariado foi no Brasil mesmo, em Jericoacoara. E o que eu mais gostei foi que eu falei para o dono do hostel que meu inglês não era fluente mas que estava ali para isso mesmo, para colocar em prática, pq com o convívio os hóspedes iria (sic) me ajudar. Eu trabalhei na recepção do hostel e ele me ajudou muito com isso do idioma. Confesso que só saí pq a pandemia chegou e tudo fechou. Acredito que nem sempre para nós negros seja assim, mas que esse tipo de experiência me ajudou, ajudou sim, pois tive todo esse apoio do lugar que estava e espero que assim como eu mais viajantes encontrem pessoas assim no caminho.  

@Tharathatha: Nossa, sempre senti um incômodo com a proposta do Worldpackers. Sempre encarei como uma experiência de classe média branca criada na sustagem que fetichiza exploração com experiências, bem estilo vagas arrombadas mesmo. Sou filha de uma ex-empregada doméstica que trocou sua força de trabalho por um quartinho e um prato de comida, sendo babá de criança mimada além de tolerar assédios. Tal qual você, entrei em uma universidade e a única até agora que pode usufruir do luxo que é viajar ainda que juntando as moedinhas. Então, dou meus pulos mas por esse tipo de situação não passo não. Ah, parabéns por seu conteúdo, estou a pouco tempo te acompanhando mas a cada postagem é um baque.  

@mariojuniortravel: Fala Gui. Ser voluntário me abriu muitas portas, eu trabalho com viagens e infelizmente no Brasil e pelo mundo é muito difícil conseguir parcerias com marcas e empresas do ramo do turismo. No meu caso sendo voluntário eu consigo aprender inglês, além de ter mais tempo no lugar para criar conteúdo! No meu caso a experiência foi positiva e me permitiu viver experiências enriquecedoras com menos dinheiro.  

@photomimix: Bom, eu ainda não tive coragem de utilizar o Worldpackers. Não havia pensado pelo viés racista até pq o racismo é estrutural e me deparo com situações estranhas todos os dias. Talvez essa dor do seu relato tmb esteja no meu subconsciente e eu não percebi. Porém, já utilizei o Couchsurfing, as pessoas não respondiam minhas mensagens até que um homem chamado Mohamed me ofereceu ajuda. Um paquistanês, muçulmano, residente na África do Sul praticamente salvou meu passeio. No entanto, todos me alertaram para não dar atenção a alguém como ele, com essas características. Penso que ele tbm é recusado em inúmeras atividades de viajantes. Se ele não tivesse tentado e eu não tivesse aceitado, eu não teria um amigo e todo esse respaldo e conexões durante a viagem. Fui muito acolhida. Não deixem de tentar por achar q serão rejeitados. Se querem, vão pra cima. Eu não gosto do esquema Worldpackers, mas amanhã talvez eu mude de ideia se a vontade for tão maior que meu bolso.  

@crrs.camila: Achei ótima reflexão. Eu e meu namorado @kayoassis fomos para a África do Sul e ficamos um mês em uma comunidade tradicional xhosa. Utilizamos o Workaway para hospedagem e fomos os primeiros negros (analisando os comentários da página) a ir para lá como voluntários. Sem o site não teríamos condições financeiras para nos manter e realizar o sonho de pisar em África de alguma forma. Nossa experiência foi incrível! Tenho certeza que isso só aconteceu porque estávamos em uma comunidade preta do continente. Quando buscamos um lugar pra ficar, nosso primeiro critério era que fosse gerido por pessoas negras ou habitado majoritariamente por pessoas negras, o que pra nós deu muito certo, pois era visível a diferença das relações entre nós e os moradores e outros voluntários brancos e os moradores… 

O Guia Negro procurou o Worldpackers para ouvir seu posicionamento sobre o tema, mas até o fechamento da matéria não obtivemos retorno da plataforma.

 

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Joyce Nascimento

Jornalista por formação e atuação, desenvolve escritas a partir do que sente, do que vivencia e de suas pesquisas. Sua caminhada é também laboratório de informações. Sambista, ex-passista da Mangueira e do Paraíso do Tuiutí, e candomblecista, visa escurecer as coisas versando com a cultura de sua origem afro-brasileira e com povos tradicionais de matriz africana

Artigos: 18

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