Lavagem do Bonfim: festa do candomblé, com interferência católica e ‘carnaval’

Procissão percorre oito quilômetros e é a maior manifestação religiosa da Bahia

Cada um vai como pode. Todos seguem para o mesmo lugar. O cortejo percorre oito quilômetros entre a Igreja Nossa Senhora da Conceição da Praia, no Comércio, para a Colina Sagrada, no Bonfim. Pretos, brancos, pardos… Mas, que fique escuro, é uma festa preta. Festa do povo negro, com música preta e swing negro. Samba, batuque, pagodão, arrocha, cânticos religiosos, axé transformado em música pró-Lula…Um sertanejo? Há uma beleza confusa que só as festas de rua têm.

Agora é cerveja na mão, “Pai nosso” na boca, suor de tanto dançar pelo corpo, guia no pescoço, turbante na cabeça, fitinha de Bonfim no braço. Quem explica? Uma mulher carrega um vaso de louro erguido no alto. O homem sustenta uma toalha do Filhos de Gandhi. Os blocos afro também seguem o fluxo arrastando seus fiéis.

Trios elétricos, carro de som, procissão. Na Colina Sagrada que leva à igreja benzedeir@s de religião afro se instalam. Eles carregam roupas de santo, folhas sagradas, mas têm um ar charlatão. Jogam água e benzem os brancos que pagam pela reza. A grade que separa a igreja do público está tomada por fitas coloridas. Um ponto famoso para fotos de turistas (que nem se importam com o catolicismo e, sim, com marcar presença em um lugar famoso e que sai bem no registro).

Homens, velhos, mulheres, bebês e bonecos gigantes disputam o mesmo espaço. Há protesto, há políticos. A crença dos pedidos soa alto em comunhão. As pombas fazem seu show à parte sobrevoando a igreja. O comércio religioso corre solto dando algum dinheiro aos ambulantes. Um “homem de bem” grita ladrão. Ele consegue conter a pessoa que teria roubado algo dele. Pede ajuda. E enquanto o “Pai nosso” é entoado bate no homem. Derruba no chão. E bate mais. A polícia chega e sem saber do caso direito, manda cassetete no negro que nem reage.

As flores, a artista da TV, as TVs e os jornalistas a postos para tentar transmitir o que é isso. E o que é? O padre Edson Menezes da Silva, que segundo relatos dos locais é doutor em religião afro, já ensaiou largar a batina para virar pai de santo, mas voltou para a igreja, sai da janela embaixo do sino para dar uma benção à multidão. É a Igreja Católica pegando carona em um evento das baianas do candomblé. Historicamente a lavagem ocorre na segunda quinta do ano, enquanto a Festa de Nosso Senhor do Bonfim que é católica ocorre no segundo domingo do ano. Ou seja, a lavagem é uma espécie de preparação para a festa do domingo, mas acabou se tornando maior e mais conhecida.

Na benção, o padre cita o Egito para falar das diferentes religiões que convivem juntas ali. A imagem construída é bonita. Mas fiquei um pouco confuso com o paralelo. O Egito atual parece tão mulçumano e pouco aberto a outras religiões…E o que é o Bonfim se não uma mistura? “Não é nada do que você pensa que é”, como diz a amiga jornalista Dayse Porto. E não é. Lembra que é uma lavagem? Mas não vemos as baianas jogando alfazema na igreja (elas ficam na parte interna da grade e não conseguimos visualizá-las), não é uma festa de candomblé, nem católica, nem só ‘carnaval’. Também não é exclusiva para ricos, pobres, políticos ou manifestantes políticos. É uma festa de largo, de rua – com sua democracia e espontaneidade. A maior das manifestações populares de Salvador (depois do Carnaval, claro).

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Redação

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