É rainha de um reino de pequenas coisas. Matriarca de uma família toda sem jamais ter gerado um filho do seu ventre. Fez o papel de mãe dos 12 irmãos, após os pais morrerem precocemente na fazenda em que moravam (o pai assassinado e a mãe num parto). Luiz, outro irmão mais velho, assumiu o papel de pai-provedor, gerenciou a Casa Formosa, comércio de secos e molhados que ocupou o número 99 da Rua Joaquim Murtinho dos anos 1950 até o começo dos anos 2000 e foi precursor em Porto Murtinho (MS).
Eles trabalhavam juntos. Lúcia Soares era a dona da cozinha. Responsável por quebra tortos (carreteiros servidos no café da manhã), cafés deliciosos, chipas, almoços, bolos e doces de leite em uma casa enorme, acolhedora e sempre cheia de gente. Era Lúcia quem dava comida escondida dos outros irmãos para a minha avó, Eroldina, quando ela ficou viúva com duas filhas pequenas e sem muitas opções de subsistência.
O irmão que chefiava o comércio morreu nos anos 1980 e o armazém foi falecendo aos poucos até fechar de vez nos anos 2000. A irmã, Joana, que também não casou, nem teve filhos e que dividia os dias com Tia Lúcia se foi antes de entrarmos nessa década.
Enfrentou a perda dos pais, dos irmãos, a passagem do tempo, as enchentes que afetaram Porto Murtinho nos anos 1980 e tantas outras intempéries… Lúcia resiste. Dona de um casarão inteiro, cheio de histórias e poeira. Nunca ganhou um salário pelo trabalho e vive do mínimo da aposentadoria, mas para o seu reino esse dinheiro é suficiente.
Uma mulher que representa força, entrega, humildade, amor e retidão. Nunca deixou de ajudar quando precisaram dela. Nunca reclamou. A não ser dos queijos ruins ou dos fornos que a deixaram na mão. Do seu papel fundamental na família, nunca se gavou (verbo tão em voga em seu mundo, tão pouco usado fora dele). Nunca a vi falando mal de ninguém. Ela se vangloria apenas de não deixar o leite lográ-la. Tia Lúcia sabe o tempo certo de interrompê-lo antes que ele suba e derrame no fogão. Acumula muitas sabedorias desse tipo. Todas muito valiosas para permanecer reinando sozinha no seu casarão.
Nos últimos anos, essa fortaleza se transvestiu de velha. Com uma corcunda, figura frágil, vista e audições curtas. Mas não se engane. Lúcia completa os silêncios da casa e da vida com o seu próprio som. Ela ronrona como os gatos para passar a tarde e se fazer companhia. Conduz a casa como uma chefe e ainda come pratos de gente grande. Na juventude foi diva – parecia a Maria Júlia Coutinho. Nos últimos meses, um irmão (Alu) passou a auxiliá-la no dia a dia. Mas sempre foi ela quem cuidou dele quase 20 anos mais novo e solteirão convicto também.
Numa visita, percebi que o casarão ficava escuro e parecia abandonado de fora. É o que ele deve se tornar… Mas com Lúcia ele ainda pulsa. Tem gato, plantas, fogão quente e uma rainha que marca espaços com sua faceirice de mão na cintura. Essa é a imagem que tenho dela: uma mão na cintura e a outra abanando me dando tchau na frente de seu castelo chamado outrora de Casa Formosa.
Uma pessoa especial que atravessou diferentes gerações. É a única das irmãs que conheceu a avó Vitória que era escrava e foi liberta. “Era bem escura”, se limita a dizer sobre essa nossa ancestral. Lúcia ama dançar, tomar mate, viajar, cozinhar e fazer bem aos outros. Faz tudo isso com muita dedicação e sorriso no rosto. Um exemplo de vida.
*Esse texto está exposto no Museu Histórico de Porto Murtinho e é uma homenagem à Lúcia Soares, que faz aniversário em 27 de fevereiro