Marcado pelo “colorismo”, musical D. Ivone Lara emociona, mas não arrebata

Espetáculo teve troca de protagonista e suscitou discussão dentro e fora do movimento negro

Texto: Guilherme Soares Dias/Fotos: Heitor Salatiel

O público de São Paulo tem a oportunidade assistir ao musical “Dona Ivone Lara, um sorriso negro”, que suscitou a discussão sobre colorismo – discriminação baseada na cor da pele – ao escolher a cantora Fabiana Cozza para viver o papel principal na idade madura da peça que relata biograficamente a vida de uma das maiores sambistas do país. O debate fez com que Fabiana, que tem a pele mais clara, desistisse do papel e desse lugar a Fernanda Jacob, sambista de Brasília, que tem tom de pele mais parecido com o de D. Ivone. A discussão iniciada na semana da audição do musical em maio de 2018 parece ainda estar no começo.

No elenco formado majoritariamente por atores-cantores negros, há quem defenda os privilégios dos negros de pele mais clara, como Cozza, e há os que digam “que todos somos negros”. O que é consenso é a importância de discutir o tema e de dar mais espaços para atrizes de pele retinta. O espetáculo em si é bom, mas não ótimo como poderia ser, uma vez que retrata uma das maiores compositoras e cantoras de samba de todos os tempos. Emociona, mas não arrebata. Não há nenhum momento em que o público vá ao delírio. A música “sorriso negro”, que dá nome ao espetáculo e poderia ter essa função, sendo cantada por todo o elenco, é cortada abruptamente, sem dar a oportunidade do público se deliciar e aplaudir de pé os atores ainda em cena.

A peça começa confusa, com de D. Ivone atendendo em um hospício. Dá quase a impressão de ter entrado no espetáculo errado. A vida da enfermeira/assistente social que se tornou uma das maiores sambistas do país vai sendo esmiuçada. “Para uma preta como eu ficar de pé precisa um esforço danado”, dispara, Ivone, na idade adulta, antes de cantar “Sonho meu”. O preconceito que sofreu por ser mulher também é retratado. “Mulher quando bota mão no samba é para servir prato de feijão”, ouve de um dos parceiros. Ivone também aparece no primeiro desfile do Império Serrano em 1947. E só em 1965 ela decide ser sambista profissional.

A parceria com Clementina de Jesus, interpretada com maestria pela cantora baiana Nara Couto também é retratada. Nara, ou Clementina, rouba a cena cantando músicas como “Marinheiro só”. O espetáculo solta frases políticas criticando militares, que o diretor artístico Elísio Lopes Jr, conta terem sido escritas antes do governo Bolsonaro. Há também uma referência à reforma da previdência, numa passagem em que se contam fatos da década de 70, como a aposentadoria de Pelé. “Quem se aposenta hoje em dia”, comenta um dos personagens, levando a plateia a um riso nervoso. “Não foi proposital. Mas o público acaba lendo como piada, então se tornou”, diz Elísio.

Outra passagem mostra que D. Ivone teria sido convidada a viver Tia Nastácia, na encenação para TV do Sítio do Pica Pau Amarelo, mas se recusa a ser a “preta que se acaba na cozinha para oferecer biscoito para a branca”. Elísio relata que começou a escrever a história de Ivone por meio da biografia no Museu do Samba. “Fui entendendo que era um espetáculo sobre a minha avó, sobre a minha tia. Toda mãe negra que tem filhos, que luta para sustentar a casa está contemplada nesse espetáculo”, afirma. O diretor artístico do musical foi buscar pessoas que conviveram com a cantora não apenas profissionalmente, mas também no contexto familiar.

Colorismo. A discussão que acarretou na saída de Fabiana Cozza, que teria sido indicada por D. Ivone para vivê-la na peça parece ainda estar fresca dentro do elenco. Elísio Lopes Jr afirma que é um “luxo” um espetáculo de teatro ajudar a discutir um tema importante como o colorismo. “Aproveitamos a oportunidade para discutir esse assunto. Sinto que tenha sido pela dor que foi provocada em uma cantora negra, que é a Fabiana Cozza, que tem a pele clara, mas é negra, engajada no samba, na luta. Infelizmente, ainda se usa a violência para discutir o racismo. Mas foi válido”, afirma. O diretor lembra que Fabiana Cozza transformou essa dor em um disco em homenagem a D. Ivone Lara e que o espetáculo foi fortalecido com a discussão. “Lançamos nacionalmente uma atriz que é a Fernanda Jacob, que faz D. Ivone na maturidade. Queria alguém que não fosse do circuito de musicais e a Fernanda acabou cumprindo essa missão”, diz.

Nara Couto afirma que há muito o que se aprender sobre o tema, mas não concorda com a forma como o assunto veio à tona e como foi conduzido. “Temos muitos recortes que vem de dores, de pensamentos, de idade, de tempo de militância que cada um de nós temos. Nós precisamos conversar sobre isso. Sou uma mulher retinta. Passo por situações onde o tom da minha pele faz muita diferença entre parar um táxi, ser preterida para namorar. É um assunto pertinente, mas não concordo a forma como foi feito”, afirma. Nara lembra que Fabiana é uma cantora excepcional e foi escolhida para viver o papel pela própria D. Ivone. “A gente precisava desse respeito, mas concordo em revermos isso. Estamos aqui para se reinventar. Levantando o que incomoda, a problemática. Ainda não chegou na solução, por isso, o debate é necessário”, considera.

Fernanda Jacob (foto) diz que foi convidada pelo diretor depois que fez um post sobre o tema, no auge do debate, em que não crucificada Fabiana Cozza, mas ressaltava a importância de atrizes de pele retinta estarem no foco de produções de teatro, TV e cinema. “Há uma mania de clarear as mulheres retintas. Esse é o momento para discutir entre a gente, o povo negro. Pois o povo branco vem querer dar uma separada e confundir um pouco. A discussão é superimportante e bato na tecla de que as mulheres retintas precisam ter seu espaço na arte”, considera.

Já Di Ribeiro, que vive Ivone na infância/adolescência, tenta fugir da discussão dizendo que não é a melhor pessoa para falar sobre o tema, uma vez que considera que “somos todos negros”. Ela ressalta que o espetáculo dá espaço para as pessoas pretas. “O protagonismo é de negros, contando a história de uma mulher preta, do jeito que tinha que ser”, considera. Já Heloísa Jorge, que vive D. Ivone na idade adulta, afirma que o musical protagonizou uma discussão pertinente no país. “A polêmica ficou polarizada em se Fabiana deveria fazer ou não o musical. O mais interessante é que começamos a discutir isso. Negros de pele mais clara no Brasil são privilegiados sim, pois estão ligados a um padrão de beleza, que é de ‘negros aceitos’. É importante que a nossa arte tenha conseguido fomentar essa discussão. Tomara que a gente consiga falar sobre esse assunto com mais naturalidade”, afirma. A atriz lembra que não é a cor da pele da Fabiana Cozza que está em questão, mas o racismo, a falsa democracia racial e os privilégios vividos por quem não tem a pele retinta. “Estamos discutindo isso com mais contundência agora”, considera.

Protagonistas. As atrizes-cantoras comentam também da importância do papel em suas carreiras e de como trazem histórias familiares e aprendem sobre uma “resistência de maneira doce” com o espetáculo. Nara Couto diz que a relação de Clementina e D. Ivone era muito próxima, pois eram duas mulheres mais velhas que fizeram sucesso tardio e não deixaram de ser quem eram. “Trago minha avó para esse personagem. A Clementina tinha uma persistência de forma natural. O cantar sempre fez parte da vida dela, seja quando ela trabalhava na casa de outras pessoas ou quando ela saiu para os palcos para fazer shows. A vida dela não mudou. Continuou sendo a Clementina que saía para fazer a feira, com o dinheiro nos peitos, que o marido acompanhava nos shows”, afirma.

Fernanda Jacob lembra que vem do samba e também passou por dificuldades em um ambiente muito masculino. “Nos dias de hoje fazer teatro, interpretando uma mulher preta, cantando samba é resistência. Para mim, é muito importante e motivador para continuar na arte e no caminho que estou”, afirma. Interpretar D. Ivone ensinou Fernanda a “ir no miudinho”. “Mas não é esse ‘miudinho’ muito doce como as pessoas imaginam. É com pé na porta e saber muito bem o que quero”, afirma. A cantora e atriz também está em um projeto chamado Afeto com grupo de teatro Embaraça, em Brasília. “Trabalhamos com temáticas raciais. Falamos muito das mulheres negras. É um espetáculo que fala sobre afetividade da mulher negra. Parei para voltar ao musical, mas na sequência retomo esse projeto”, diz.

Di Ribeiro (foto) foi a última a integrar o projeto. Ela começou a ensaiar no dia 3 de agosto e estreou no dia 29 do mesmo mês. “Ainda estou construindo. Conhecia o nome, mas não sabia a fundo. Tem sido muito importante. Ela foi uma mulher que deixou um legado para nós, de ir no joguinho de cintura. Hoje a gente vem quebrando tudo. A história dela é a nossa história sendo contada”, resume.

Heloisa Jorge (foto abaixo) lembra que a temporada em São Paulo tem cara de estreia por ter ganhado a presença de novos atores. “Tem sido uma experiência linda prestar essa homenagem a ela. Eu faço a D. Ivone em uma fase que as pessoas pouco conhecem, que a enfermeira, assistente social, dona-de-casa, noiva do Oscar durante dez anos”, conta. A atriz e cantora afirma que fez uma pesquisa sobre saúde mental pública brasileira. “Fiquei triste, pois D. Ivone não teve o mesmo reconhecimento que a doutora Nize da Silveira. Ela também contribuiu muito para a saúde pública. D. Ivone levava música para os pacientes, em uma época em que o tratamento era eletrochoque. Ela humanizou a saúde pública brasileira”, afirma, sobre uma faceta pouco conhecida da cantora.

A personalidade da biografada que é retratada como afetuosa, mas rígida também é destacada pela atriz. “Às vezes, as pessoas confundem a doçura de D. Ivone, mas isso era uma estratégia. Ela dava as composições para o primo levar para a escola de samba. As canções dela só foram conhecidas porque ela fingia que não estava fazendo nada, mas estava fazendo tudo. Ela foi pioneira de uma série de assuntos que hoje discutimos com mais contundência”.

O musical ficou em cartaz por quatro meses no Rio, de agosto a novembro de 2018. Ao todo, o espetáculo tem 70 pessoas trabalhando. Em São Paulo, a peça estreou em 29 de agosto e fica em cartaz até 20 de outubro.

Serviço:

Quinta, sexta e sábado: 20 horas/ Domingo: 17 horas

Teatro Sérgio Cardoso (Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, São Paulo) Ingressos: De R$ 20 a R$ 75 no site da Sympla.

Duração: 135 minutos/ Classificação indicativa: 12 anos

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Redação

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