O boom de brasileiros no Atacama

Incrible” (sic), diz um comentário em um dos hosteis de San Pedro de Atacama, Chile, sobre a experiência de uma turma do Rio de Janeiro que esteve na cidade no meio do deserto considerado o mais árido do mundo. O “portunhol” e o sotaque português estão presentes na cidade toda, assim como bandeiras verde e amarelo e brasileiros trabalhando ou circulando pela Caracoles – a rua principal do lugar.

A estimativa das agências que trabalham com turismo é de que 30% a 40% dos 1 milhão de turistas que visitam o Atacama por ano sejam brasileiros. Os dados do Servicio Nacional de Turismo (Senatur) de 2016 mostram que os brasileiros desbancaram os alemães e se tornaram a terceira nacionalidade que mais visita o Atacama. Na liderança, aparecem os próprios chilenos, seguidos dos franceses.

Segundo a subsecretaria de Turismo do Chile, o deserto mais árido do mundo ultrapassou Torres del Paine, na Patagônia, e a Ilha de Páscoa e se tornou o destino mais visitado do país. O Atacama virou “moda” e passou a estar no topo da lista de desejos dos brasileiros, ao lado de destinos como Machu Pichu, no Peru, San Andres, na Colômbia e Patagônia argentina, que figuram entre os destinos mais sonhados pelos brasileiros na América do Sul.

Com tantos turistas tupiniquins visitando, foi quase natural que o turismo do Atacama passasse a se voltar para esse público. Agências passaram a se especializar e oferecer diferenciais, para focar em um público A, B que não está disposto a passar perrengues e vê perfis do Instagram cheio de fotos de turistas curtindo o deserto, trajando roupão e brindando com taças de vinho em meio a cenários paradisíacos. Não é incomum ouvir dos visitantes que querem visitar determinado lugar para repetir uma mesma foto que já viram.

O movimento de brasileiros começou a virar mais frequente após a apresentadora Glória Maria visitar o Atacama para um Globo Repórter que foi exibido em setembro de 2008. Além da divulgação na emissora de TV de maior audiência do país, o boca a boca foi ajudando a crescer o número de turistas que falam português. Blogueiros especializados em viagem também contribuem para esse movimento. As paisagens, deslumbrantes e diferentes entre si, ajudam a firmar o destino entre os mais desejados dos viajantes. E quando eles chegam ao deserto, percebem que nem mesmo as fotos conseguem registrar a imensidão toda de lugares como Valle de la Luna, Piedras Rojas, Salar de Tara, entre outros.

A advogada paulistana Adriana Leal, 55 anos, escolheu o Atacama para passar as férias com um amigo por conta das paisagens. “É um destino de aventura, com um número gigante de lugares a serem visitados, com tudo que a natureza oferece: montanhas, lagos de água salgada, rio com águas termais, geyseres, vulcões, neve, calor, frio, deserto…Além de ser um dos melhores pontos de observação do céu”, enumera. Adriana considera que mesmo tendo lido bastante sobre o destino, a viagem superou as expectativas. “Achei o lugar mais lindo do planeta”.

O sucesso que o destino faz e o número crescente de visitantes também atraíram trabalhadores brasileiros. Os mochileiros pela América Latina começaram a perceber que o Atacama seria uma parada quase natural para juntar dinheiro e continuar na estrada. Muitos trabalham sem o RUT(Rol Unico Tributario, documento que permite trabalhar legalmente no Chile) e ficam temporadas de até três meses, tempo permitido pelo visto de turista. Nas agências chilenas, os trabalhadores brasileiros costumam ser vistos com bons olhos: além de falar português – causando identificação natural com os visitantes tupiniquins – são conhecidos pela simpatia e por serem hard workers.

A facilidade de conseguir um trabalho é aliada aos salários altos. É fácil um garçom, vendedor de agência ou hunter (figura que fica na rua chamando turistas para entrar na agência) ganharem até 1 milhão de pesos, o equivalente a cerca de R$ 5 mil. Não é incomum, no entanto, ouvir histórias de calotes e de trabalhadores dispensados sem receber o salário devido. A ilegalidade do trabalho, para os que têm apenas visto de turista, contribui para isso.

O chileno Michael Valdel é um dos que se especializou no público brasileiro ao transformar a Ayllu, agência que comanda, em especializada no público de luxo brasileiro. “Em 2011 namorei uma brasileira e decidimos focar no público vindo do Brasil de classe média alta. Percebemos que eles gostam de se exibir e tirar fotos bonitas da viagem. É uma característica diferente, por exemplo, do chileno que prefere pegar o pacote mais barato”, diz Michael.

Em 2016, a agência recebeu 1,2 mil pessoas, 99% deles brasileiros. Um dos impulsinonadores do destino no Brasil é o próprio governo do Chile. Somente no primeiro semestre deste ano, o Senatur investiu R$ 850 mil numa campanha de publicidade focada no Rio e São Paulo.

Outra agência especializada no público classe média alta é a FlaviaBia Expediciones, que pertence à brasileira Flavia Ribeiro. Ela mora no Atacama desde 2011 e diz que as pessoas que procuram a agência buscam um diferencial. “São turistas que querem para além de conhecer as paisagens do deserto, conforto e experiências personalizadas. Além disso, o brasileiro se sente mais a vontade quando chega na agência e ouve português”, considera.

O capitalismo e a vibe hippie

Entre os trabalhadores atraídos pela proposta de trabalhar e juntar grana está a gerente da agência 1,2,3 Andes, Bianca Blefari. Estudante de Direito no Brasil, ela largou o último semestre da faculdade para viajar. A ideia era ficar um mês em cada país da América do Sul. Ela começou pelo Chile. Percorreu do sul ao norte do país e chegou a San Pedro com passagem comprada para ir embora, mas recebeu uma proposta de trabalho. Decidiu ficar.

Hoje ganho 2,5 vezes mais do que recebia em um escritório de advocacía em São Paulo. Estou juntando dinheiro para viajar mais”, afirma a jovem de 24 anos. E complementa: “Eu sou uma pessoa totalmente urbana, mas percebi que não precisava de muito para viver. Hoje vivo sem água quente e internet, mas tenho mais contato com a natureza e um maravilhoso céu estrelado diariamente. Além disso, a cidade tem uma energia muito especial. Parece papo de hippie, mas é algo que você sente estando aqui e te faz ficar bem”. 

No último 12 de junho, a atriz Taís Araújo podia ser vista pela rua principal da cidade fazendo compras com duas amigas. Ela esteve hospedada em um hotel all inclusive, que cobra US$ 1 mil pela diária e disponibiliza um carro com um guia para cada quarto. “E como é morar por aqui?”, me questionou após saber que eu vivia na cidade. Respondi que era tranquilo, dava pra fazer tudo a pé e que a cidade tinha dinheiro. A atriz global disse que pretende voltar com os filhos quando eles forem maiores.

Além do foco no Brasil, o diferencial da Ayllu, FlaviaBia Expediciones e 1,2,3 Andes é que não terceirizam os serviços, uma prática comum na cidade em que passageiros são repassadas para outras agências para encher os turs. A agressividade do turismo foi tema do post de despedida do administrador Marcelo Sturari, 28 anos, que está viajando há mais de um ano pelos países do sul da América do Sul e trabalhou dois meses no Atacama durante o verão a alta temporada do lugar. “San Pedro gira em torno de uma coisa somente: turismo. São literalmente 10 quarteirões de ‘cidade’ sendo a rua principal abarrotada de agências. O que vale ali é o dinheiro do turista. A demanda é maior do que a oferta. A ganância é gritante naquelas ruas. Problemas com turs são constantes. Vende-se primeiro, pergunta-se depois. Ganha-se na simpatia e confiança ou pelo cansaço. E eu fui parte disso”, relata, contando a experiência de ter sido hunter e vendedor na Caracoles (foto) em uma das cerca de 100 agências da cidade de 7,5 mil habitantes voltada para o turismo e que abriga mais de 300 hotéis.

Mesmo com a disputa por cada turista que passava pela rua, o viajante considera a experiência rica: “De longe um dos lugares mais impressionantes que já vi e vivi. No deserto mais árido do planeta o idioma mais falado é o portuñol, a quantidade de turistas brasileiros nas poucas ruas de San Pedro (ou São Paulo de Atacama como brincam por lá) é enorme e, por isso, encontrar trabalho sendo brasileiro não é muito dificil.”, relatou no Facebook.

Marcelo complementa contando como era o trabalho e a vida na cidade: “Eram horas e horas debaixo do sol escaldante do deserto até tarde da noite batendo números. Precisava fazer grana e entrei de cabeca nesse ritmo. Sair completamente da zona de conforto, descobrir e reinventar-se para vender, sobreviver e poder continuar a viagem”, considera.

Além de São Paulo de Atacama, a cidade é chamada também de San Pedro de Atrapama. Atrapar em espanhol é prender. A energia e a grana “fácil” acabam segurando os viajantes que visitam ou trabalham no lugar por mais tempo do que o planejado. É o caso da guia Carola Poche, 43 anos, que abriu a própria agência online, Discovery Atacama, e chegou na região pela primeira vez em 2004. “Vim ficar uma semana e fiquei três anos. Não via muitos brasileiros visitando, nem trabalhando. Fiquei um bom tempo sem falar português”, diz ela, que conta que no final da sua primeira temporada começaram a chegar alguns motoqueiros e viajantes de caminhonetes 4X4 vindos do Brasil.

Depois de um tempo entre Rio, São Paulo e Florianópolis, Carola voltou ao Atacama em 2013. A cidade tinha ganhado iluminação pública nas ruas e um número crescente de visitantes brasileiros. “Hoje, nos feriados do Brasil, a cidade é invadida e você percebe que metade das pessoas que passam por aqui são brasileiras”. Questiono se o número crescente de brasileiros morando e visitando trouxe alguma mudança para a cidade. “Os chilenos gostam dos brasileiros pela espontaneidade e alegria. Isso é uma coisa mais presente hoje”, acredita.

E você tem medo de que a moda de vir para o Atacama passe entre os brasileiros? , pergunto. E Carola responde: “Meu medo é que esse turismo massivo transformem a cidade em outra coisa. Dessa forma, acho que quem vem pra cá precisa querer saber da cultura, dos costumes. San Pedro é mais do que os pontos turísticos, existe uma cultura ancetral que precisamos incentivar que seja preservada”, defende.

Os guardiões dessa cultura são os licananthays (povos do alto, na extinta língua kunza) ou atacamenhos, como foram chamados pelos espanhóis. Eles são os povos originários da região que atualmente vivem, majoritariamente, do comércio, aluguel de casas, motoristas de turs e administração dos parques que recebem os turistas no deserto. Com ruas sem asfalto e grande parte das casas feitas de adobe (um barro próprio para o clima do deserto, já que resfria a temperatura do ambiente durante o dia e esquenta à noite), San Pedro tem uma vibe hippie. Apesar de atrair muitos mochileiros a cidade tem leis duras. Artesãos são proibidos de vender mercadorias na rua (a polícia sempre apreende); a maioria dos bares só pode vender bebida alcoólica se o cliente consumir algo de comer; não se pode beber na rua (essa lei vale pro Chile todo) e há uma legislação que proíbe dançar nos estabelecimentos comerciais.

Além de repórter da Calle 2, que retrata esse crescimento do turismo brasileiro no Atacama, fui um dos trabalhadores atraídos pela promessa de grana para continuar viajando. Em San Pedro, repassei clientes para outras agências para encher carros; devolvi dinheiro de turistas descontentes com o péssimo serviço para a travessia do Salar de Uyuni; organizei free walling turs pela cidade; fiz amizades com passageiros que ficaram contentes com nossos trabalhos. Deixei de ser pago e fui demitido quando não era mais útil em um agência, mas comecei em outra no mesmo dia. Também vi chuva de granizo no deserto; múmia ser desenterrada no meio da rua; terremoto; subi vulcão ativo e vi paisagens tão incríveis, que deixam qualquer outro lugar do planeta para trás.

Publicado na revista digital Calle 2.

15 lendas, curiosidades e histórias de San Pedro de Atacama, no Chile

 

 

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Redação

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