O ano era 1992. Despontava um furacão musical da Bahia chamado Daniela Mercury, que balançaria as estruturas não apenas do Museu de Arte de São Paulo (Masp) com seu espetáculo no vão livre, mas também a configuração do mercado musical e do show business, sobretudo com o lançamento de ‘O Canto da Cidade’, disco marco de sua carreira. Trinta anos depois, a obra volta à tona com o e-book escrito pelo jornalista e crítico musical Luciano Matos, que mergulhou no universo do disco para analisar o seu impacto cultural.
‘O Canto da Cidade: da matriz afro-baiana à axé music de Daniela Mercury’ (Edições Sesc São Paulo, 2021) narra a trajetória da cantora, destacando as referências na composição de sua carreira e que foram cruciais para o sucesso do álbum, o qual vendeu mais de 2 milhões de cópias no Brasil. Por meio de entrevistas com compositores, produtores, artistas e empresários do ramo musical, Luciano destaca o papel dos blocos afro e da cultura negra da Bahia, e analisa a mudança de paradigma cultural pós-Mercury.
No processo de fortalecimento de seu nome no ramo da música, cantando em barzinhos e fazendo backing vocals para nomes como Gilberto Gil, Daniela era frequentadora assídua das festas e ensaios dos blocos afros de Salvador, como Muzenza e Ilê Ayê. Interessada por expressões artísticas de verve negra, a cantora fazia desses espaços uma espécie de sala de aula. “Eu me lembro que a levava a todos os guetos, a todos os blocos afro, e o que me impressionava é que ela ficava olhando a boca do cara cantando” comenta no livro Jorginho Sampaio, seu empresário da época.
Sendo apresentada aos compositores, instrumentistas e lideranças desses blocos, e incorporando os elementos culturais das matrizes afro-baianas em sua performance, Mercury já tinha arcabouço suficiente quando lançou seu primeiro álbum em 91, trazendo o hit ‘Swing da Cor’ (Adailton Poesia), começando a fazer-se conhecida para além do eixo do Nordeste. Mas foi no disco posterior que o Brasil voltou os olhos para aquela mulher nordestina, branca, que canta e dança seu regionalismo, misturando o pop com o político dos blocos afros.
Contudo, não foi ela quem inventou “a roda”, expressão que foi título de outra música do gênero que já fazia sucesso antes do estouro de Daniela. Sarajane, Luiz Caldas, Banda Reflexu’s, Olodum, Banda Mel, são alguns dos nomes que na década de 90 já tinham emplacado hits e conseguido visibilidade nacional com seus trabalhos. Margareth Menezes, por exemplo, fez a abertura dos shows de David Byrne em turnês internacionais nessa época, sendo uma das pioneiras em levar a música da Bahia para fora do Brasil.
Então, por que quando se pensa em axé music, ‘O Canto da Cidade’ parece ser “o primeiro que canta”? Em termos técnicos, o disco traz a percussão amalgamada com outros instrumentos, sofisticando o que era tido como som “tribal” pelos críticos e empresários em relação aos álbuns de blocos afro. No caso de composições, misturou não apenas “a música de protesto”, mas também incluiu elementos mais pop e palatáveis para execução nas rádios. A canção-título, inclusive, teve versos alterados pela própria Daniela que, de primeira impressão, não queria gravá-la. Tote Gira, compositor da canção, viu nisso uma tentativa de embraquecimento da qual ele só veio assimilar tempos depois.
E por falar nesse aspecto, o sucesso retumbante de Daniela Mercury fez com que o marketing voltado para as cantoras de axé mudasse radicalmente. Muitos empresários procuraram modelos parecidos para surfar na onda do sucesso, fazendo “a cor dessa cidade” ser representada de outra maneira. Entretanto, é importante salientar que a cantora realizou contratos milionários com empresas de publicidade, turnês internacionais e até ganhou especiais de TV na Rede Globo. Suas apresentações, carregadas de coreografias, mudanças de cenário e figurinos, receberam status de espetáculos que impactaram a forma de fazer shows no Brasil, influenciando uma geração de cantoras.
O autor também toca no tema da “decadência” da axé music, não só enquanto gênero musical, mas movimento cultural. Uma das razões que contribuiu para tal foi a maneira como os empresários dos artistas e dos blocos acentuaram o marketing em detrimento do fazer artístico e social. Pois, como aponta a fala do maestro Letieres Leite (in memorian), não houve o replante, que seria investimentos em grandes casas de shows, ou formações com projetos de fomentações em músicos, por exemplo.
A obra de Luciano, que figurou em 1º lugar entre os livros de música mais vendidos da Amazon, faz jus ao posto. O livro vai muito além da análise do álbum, pois desenha pro leitor um panorama de música brasileira, quem a faz e como a faz, por meio de uma pesquisa apurada. Para os fãs, é um livro com muitas curiosidades. Para os apreciadores de música brasileira, um manancial de referências. Para o leitor comum, um estudo que vale ser apreciado para enriquecimento de repertório. Luciano mostra, faixa a faixa, que o canto ainda ecoa.
LEIA MAIS:
Aya Bass reúne potências de Larissa Luz, Luedji Luna e Xênia França
Salvador é a meca negra: todo negro precisa ir pelo menos uma vez