Por Gabriel Nascimento**//Universidade Federal do Sul da Bahia
Ocorre de eu sempre ter me incomodado com o Pajubá. Durante muitos anos pensava que meu incômodo, até aquele ponto pouco embasado cientificamente, não deveria ser tornado público até que, com argumentos perfeitamente mais relevantes, eu pudesse debater os sentidos reais desse incômodo.
Depois de bastante tempo passei à fase de perceber que eu não me incomodava com a língua, mas, como é comum, com os seus usos discursivos na sociedade brasileira. Durante muito tempo as línguas foram vistas como forma de discursivizar o pensamento humano e seus diversos matizes culturais, econômicos e políticos. As línguas foram, assim, se tornando verdades materiais e imateriais da humanidade com o chamado uso. O uso, porém, passou a ser interpretado à luz de teorias que nem sempre queriam compreendê-lo em sua plenitude, em sua diferença, mas, sobretudo fora dos meios científicos, na sua capacidade de se cristalizar, se tornar duradouro.
A fala, que tem potencial imenso na história do mundo, foi se confundindo, ela própria, com a língua, e as línguas modernas (português, espanhol, inglês, italiano etc.) passaram ao status de guarda-chuva de um pensamento moderno colonial. Isso eleva as línguas a mais do que um fenômeno onde o pensamento humano é discursivizado, ou seja, tornado representação. As línguas, elas próprias, se tornaram formações discursivas coloniais a serviço de toda sorte de nomeação e estruturação dos saberes coloniais, que passam a se tornar verdade.
Podíamos mesmo ficar horas e horas tentando compreender onto e filogeneticamente onde e quando uma língua vira um discurso de verdade, em que, ao passo em que ela se naturaliza, se naturalizam os discursos que nela passam a circular. O estudioso branco Mikhail Bakhtin[1] nos deu outra versão para este fato. Para ele, não é só uma questão evolucionária da vida na terra a forma com que passamos a naturalizar e existir na língua. É a interação, que traz consigo exemplos fenomenológicos do mundo pregresso e atual, mas também posterior, que dá ao sujeito um papel que ele mesmo não parece saber existir em sua inteireza. O ser não apenas modifica a língua, mas a replica com imensa capacidade de absorção da história no que ele chamava de dialogismo.
SURGIMENTO
O Pajubá teria surgido no Brasil não da idealização colonial que fez existir línguas modernas, mas de uma contra-razão de sujeitas na margens, as travestis negras de rua. A propósito disso, a ideia de margens, ou fronteiras, deve nos servir para se entender como surge uma língua de racializados e sujeitos afetados pela colonialidade. O próprio caso dos crioulos africanos e do caribe nasce de uma estratégia colonial de continuar a existir, mais do que assimilar aqueles valores brancos hegemônicos. Embora, do ponto de vista do mundo branco, a língua crioula seja apenas enxergada como um ponto de contato, o racializado a enxergava como forma de continuar existindo, apesar daquele mundo de violências. Nem o colonizador e nem o racializado, portanto, são ocos. Porém, muitas vezes o negro escravizado é assim enxergado, como se ele tivesse se submetido àquela língua de tal forma que a falasse errado. Vários são os exemplos dos mitos de uma dada língua moderna que, quando usada em algum país fora do norte global, é vista como mal falada. A velha história racista de que o português é um espanhol mal falado guarda raízes na performance de como a América Ibérica, então chamada assim, se formou.
No Brasil ainda há várias versões sobre se o país foi capaz de produzir crioulizações na língua. Ou seja, do ponto de vista da linguística, se o negro gerou uma língua “legítima”. O linguista branco Dante Luchesi[2], ao se debruçar sobre esse fenômeno, tem como ponto de partida de que, para a existência de uma língua em especial como o crioulo, é preciso que haja uma ruptura na transmissão linguística do português e um amplo processo de segregação e isolamento. Diversos outros autores, embora admitindo o impacto das amplas populações africanas escravizadas para as línguas faladas no país, não creem que a crioulização no Brasil tenha sido ampla como em diversos países, e ficam entre negar sua existência e desconfiar dela. Anthony Naro e Martha Scherre[3], por exemplo, argumentam que, além da ausência de registros que possam reforçar a ideia de uma ampla formação linguística crioula, vários fenômenos que passam a ser utilizados pelos escravizados são fenômenos já vistos em diversas línguas no sistema mundo.
LÍNGUAS AFRICANAS x LÍNGUAS EUROPEIAS
O grande problema da maioria dessas visões é justamente olhar as formas de falar dos africanos como “línguas”, com a mesma lente com que se olha para línguas europeias modernas. Isso quer dizer que, enquanto o europeu branco estava transformando seus modos de falar numa padronização racial que ele passa a chamar de língua, impondo essa língua em sua lógica de invasão, os povos africanos já usavam no mundo pré-colonial as suas línguas como discurso, o que se pode comprovar com a ideia de que vários dos atuais países africanos continuam multilíngues, sem haver várias das preocupações de separatibilidade linguística no ocidente, onde vivemos de criar traços distintivos entre nossas línguas.
Nessa direção, os autores Sinfree Makoni e Pedzisai Mashiri, [4] ao analisar a invasão das línguas europeias no continente africano, lembram que as práticas pré-coloniais de uso linguístico se davam mais em termos discursivos do que estruturais. No ocidente sempre o contrário, porque a estrutura serve para fabricar normas fictícias, que servem à disciplina colonial do homem branco em sua guinada de destruição do mundo. Portanto, é preciso pensar as práticas linguísticas de povos negros no Brasil não a partir de sua ascensão a uma agenda evolucionária linguística, em que língua seja vista como igual em todas as partes do globo, mas como um retrato de uso discursivo e formas de representação desses povos. A propósito disso, o kimbundu e kikongo, línguas mais comuns entre os primeiros africanos a chegarem ao Brasil por força do horroroso tráfico negreiro, passaram a se disseminar na língua portuguesa, gerando impactos irreversíveis, justamente por sua capacidade de continuar sendo vista como língua pelos seus povos sem necessariamente se assimilar aos formatos ocidentais.
O PAJUBÁ
O Pajubá é uma língua (aqui não usarei nenhuma forma de quantificar línguas, como dialeto ou socioleto, por exemplo) que passou a ser conhecida da sociedade quando rompeu os muros do segredo e do sagrado dos cultos de matriz africana no país, como é o caso do candomblé, umbamba, tambor de mina, batuque etc. No terreiro, esses falares não têm nome ocidental, porque o ocidente ainda não foi capaz de se entender fora das nomeações coloniais e os terreiros existem e enxergam o mundo como complementar, diferente do ocidental, que precisa transformar tudo em replicável e uniforme.
A saída do Pajubá dos terreiros e a chegada aos espaços de rua têm a ver com a generosidade desse espaço africano no país, que é o terreiro. Ao contrário do que dizem as teorizações sobre crioulização, os terreiros são exemplos de crioulização, mas não carecem desse nome para que sua linguagem signifique estratégia política contra colonial em que se fala uma dada linguagem aos seus, na hora correta e nos lugares corretos. A sua estratégia dialoga fortemente com as formações linguística dos crioulos da América Central, por exemplo, não nos termos brancos que só enxergam, do ponto de vista da linguística, a segregação e isolamento forçado, mas do ponto vista da estratégia de povos que, isolados forçadamente ou por estratégia política, passam a impedir que seu saber oralizado venha a ser conhecido por todos de maneira indeterminada.
No caso do Pajubá, Dodi Tavares[5], em sua tese de doutorado, denomina o Pajubá como língua anticolonial transgênera, justamente por passar a ser conhecido pelos meios de comunicação por causa da vida e resistência de mulheres negras trans que, nas ruas, passaram a usar a língua para se fazer significar. O Pajubá reúne do ponto de vista linguístico-estrutural contribuições de mais de uma língua, como umbundo, quimbundo, quicongo, nagô, ebá, jeje. Em que pese não tenhamos o foco nessas línguas como unidades, essas práticas condicionam um jeito de falar que já se dava no domínio das manifestações de segredo e sagrado dos cultos de candomblé.
SILÊNCIO
Marialda Jovita[6], falando do silêncio, discute que em sua tradição de ijexá o silêncio não é só dor, mas resistência, cuidado e advertência. Os orixás jamais enxergaram o falar como a completude do ser. Embora a ideia de falar se confunda com os direitos linguísticos que, no ocidente, são fonte de um liberalismo que, contraditoriamente, dá direito à fala, mas a nega quando os processos fundamentalistas do liberalismo econômico são atacados, nas culturas africanas que chegaram ao Brasil no tráfico negreiro, o falar sempre foi discursivo e político. As próprias culturas ancestrais de base malê nos legaram revoltas que lidaram com o monolinguismo dos brancos colonizadores. Assim foi a Rebelião de Santana, em 1789, a Revolta dos Búzios em 1798 e a Revolta dos Malês de 1835, sendo todas essas na Bahia. Nessas revoltas o uso linguístico das mais diversas línguas, seja em manifestos escritos em língua portuguesa ou em árabe, testavam um monolinguismo branco que continuava enxergando os escravizados por suas lentes europeias. Assim, várias reuniões secretas deram lugar ao drible da própria suposta erudição do branco monolíngue.
O Pajubá só pôde extravasar os muros dos terreiros porque os terreiros foram desde sempre lugar de solidariedade e cuidado. Em algum momento seria impossível que alguns daqueles saberes de tantos séculos não saíssem de lá por alguns de seus frequentantes. No caso das travestis negras, o seu uso está completamente disciplinado na sua existência de fronteira, nos termos da intelectual chicana Glória Anzaldúa, em que a fronteira não é escolha, mas lugar imposto nas sociedades modernas.
PAJUBÁ NO MUNDO LBGT
O grande problema é quando o Pajubá sai das bocas das travestis, mulheres negras que resistiam nas ruas com seu corpo e suas línguas, e passa a ser reproduzido amplamente no mundo LGBT. O mundo é LGBT, muito embora suas bases de luta histórica em travestis negras também nos Estados Unidos, é altamente liberal. O liberalismo, por si só, traz problemas graves em suas contradições fundamentais, como é o caso das invenções das tradições ocidentais, que passam a virar mais mandamento do que realidade objetiva. Direitos fundamentais, assim, além de demorarem demasiadamente para se tornar reais, foram cassados em todas as crises do liberalismo no ocidente. Com exceção das mulheres trans negras, que são vistas como plenamente extinguíveis do ponto de vista deste mundo moderno, e parecem estar aqui cumprindo tabela nestas fábricas de guerra da modernidade, o mundo LGBT parece avançar pouco contra suas bases liberais, como se o liberalismo fosse mesmo um mantra a ser seguido do ponto de vista do corpo. O corpo-base desse mundo continua a ser o branco, masculino e próximo da versatilidade heteronormativa.
Tal como o português herdado dos africanos escravizados, o Pajubá vai pouco a pouco sendo incorporado aos falares do gay tradicional urbano. Risonho, debochado e cruel, ele não só usa o Pajubá para reforçar o liberalismo que o criou, mas para praticar racismo, misoginia e para reforçar que essa liberdade, no caso, só serve para ele. O nome neca, por exemplo, é uma referência direta ao órgão sexual masculino que, nas culturas ancestrais africanas, não tinham peso de deboche ou racialização porque essas culturas não logofonocêntricas não tinham palavras como homem e mulher, com seus pesos patriarcais ocidentais. Portanto, Homem e Mulher são generificações modernas muito problemáticas. Ao trazer neca para sua dimensão globalizada, o gay branco tradicional por vezes confunde um homem preto, com vida e historicidade, apenas por seu órgão sexual, o desidentificando com o uso de uma língua que veio dele próprio.
Ao passo em que a ampla população preta brasileira vai desaparecendo, e com ela os jeitos de se fazer e se pensar a cultura africana, que dela é inegavelmente parte, as línguas e culturas desses povos vão sendo reinventadas. O problema com o Pajubá não é seu uso trans, numa versão de onde se extravasa o falar também no lugar certo e propício, que é a fronteira das ruas, mas o seu uso por um gay que, racista e heteronormativo, faz uso dessa língua para se cristalizar como o sujeito dessa língua. Amapô não é só usado para designar as mulheres que têm racha, isto é, um buraco entre as pernas, como idealiza o gay branco, mas para se vingar delas numa zombaria que nunca teve nada correspondente nas línguas africanas. Carimbo ou dengue, por exemplo, viraram formas de chacota com a vida de pessoas que foram infectadas por alguma Infecção Sexualmente Transmissível (IST). Esses são alguns dos múltiplos exemplos extraídos do que vem sendo reconhecido como Pajubá.
Não estou, com isso, defendendo a pureza de nenhuma língua, mas o uso contextualizado que relembra sempre seus autores e os corpos que sempre estiveram por trás dessa produção. Primeiro, os africanos que aqui chegaram e, depois, as próprias travestis que, embora usassem algumas dessas palavras, não estavam dando o sentido que o mundo liberal branco vem dando. O Pajubá traz palavras da língua portuguesa e as mistura com palavras tradicionais, sendo por vezes uma língua que está sendo agenciada para destituir saberes tradicionais e não para desuniversalizar o gênero, como faziam as primeiras mulheres trans a usá-lo. Essa língua, que traz desde os terreiros, arquétipos de uma crioulização bastante estratégica, é símbolo de que as africanidades no país estão em risco com a morte física dos ancestrais pretos dos povos africanos porque o fundamento do pajubá não está na concepção da língua como estrutura sistêmica, mas de como essa estrutura sistêmica se concebe enquanto fonte discursiva no uso, em que, tal como nas línguas africanas, se pode usar o português e o próprio pajubá, cheio de termos de origem africana, para resistir e despistar a opressão racista e colonial.
É precisamente essa a possibilidade de resistência com o Pajubá. Continuar existindo sem deixar de retornar aos ancestrais diretos que trouxeram e mantiveram saberes estratégicos, de silêncio e segredo durante séculos, e que foram responsáveis como fonte inesgotável da sabedoria popular e do português popular do Brasil.
**Gabriel Nascimento é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia. Doutor em estudos linguísticos pela Universidade de São Paulo (USP), foi Visiting Scholar na Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos. É autor de “Racismo linguístico: Os subterrâneos da linguagem e do racismo” (Letramento Editorial).
[1] BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
[2] LUCCHESI, Dante. Por que a crioulização aconteceu no Caribe e não aconteceu no Brasil? Condicionamentos sócio-históricos. Revista Gragoatá (UFF), v. 24, p. 227-255, 2019.
[3] NARO, Anthony & SCHERRE, Martha (1993) Sobre as origens do português popular do Brasil. DELTA, 9, no. Especial, 437-454
[4] Makoni, S. & Mashiri, P. & Pennycook, Alastair. (2007). Critical historiography: Does language planning in Africa need a construct of language as part of its theoretical apparatus?. Disinventing and Reconstituting languages. 62-89.
[5] LEAL, Dodi Tavares. Performatividade transgênera: equações poéticas de reconhecimento recíproco na recepção teatral. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Universidade de São Paulo, 2018.
[6] SILVEIRA, Marialda Jovita. A educação pelo silêncio: o feitiço da linguagem do candomblé. 1a. ed. Ilhéus, Bahia: Editus, 2004. v. 1. 207p .
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