Quando um jornal resolve reparar seu passado escravocrata

Se você é uma pessoa negra, já deve ter sido questionada por pessoas não-negras como elas podem contribuir com a luta por igualdade racial no Brasil. Os manuais de redes sociais costumam indicar que o primeiro passo é reconhecer seus privilégios. Isso quer dizer: não é que você, pessoa branca, não tenha se esforçado para chegar onde chegou, mas partiu em vantagem em relação a uma pessoa negra dados os privilégios garantidos por sua ancestralidade branca. 

O segundo passo, a partir disso, é apoiar e fomentar ações de reparação histórica, uma vez que a pessoa do século 21 não foi quem comercializou e lucrou com a mão de obra de pessoas negras escravizadas nos séculos passados, mas seu tataravô provavelmente sim. E as condições sociais e financeiras da família são resultado disso, num nível de acumulação de riqueza e status social que atravessaram gerações até a atual – e muito provavelmente vai perdurar para as gerações posteriores se nada mudar.  

Para além do nível individual e do governo, que deve promover políticas públicas de reparação, o debate também chama as instituições privadas para sua responsabilidade. Isso porque supermercados perseguem e matam clientes negros; campanhas publicitárias e reportagens jornalísticas reforçam estereótipos racistas; companhias têm processos de seleção e promoção absolutamente excludentes para profissionais negros – quando não usam mão de obra de pessoas em condições análogas a escravidão

O jornal inglês The Guardian está dando uma aula de reparação histórica e racial no jornalismo – que vale para o meio corporativo no geral. Eles investigaram o passado escravocrata de seus fundadores e, a partir disso, tomaram ações de reparação com os descendentes de quem gerou o capital sem o qual o jornal não existiria. 

“É importante o posicionamento do jornal de que para investigar os outros, precisam antes investigar a eles próprios”, observa a jornalista Beatriz Sanz, membro da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial de São Paulo (Cojira-SP), órgão consultivo ligado ao Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. 

Reparação histórica

The Scott Trust Limited é a empresa britânica sem fins lucrativos proprietária do Guardian Media Group, que controla os jornais The Guardian, The Observer e outras empresas de mídia no Reino Unido. A companhia encomendou uma pesquisa acadêmica independente para as universidade de Nottingham e Hull em 2020 para investigar se havia alguma conexão histórica entre a escravidão e John Edward Taylor, jornalista e comerciante de algodão que fundou o The Guardian em 1821, e de outros empresários de Manchester que financiaram sua criação.

O relatório Scott Trust Legacies of Enslavement, publicado nesta semana, revelou que Taylor e pelo menos nove de seus 11 apoiadores tinham ligações com a escravidão, principalmente por meio da indústria têxtil. Taylor tinha vínculos por meio de parcerias na empresa de fabricação de algodão Oakden & Taylor e na empresa comercial de algodão Shuttleworth, Taylor & Co, que importava grandes quantidades de algodão bruto produzido por escravizados nas Américas.

Diante da investigação, a empresa pediu desculpas “às comunidades afetadas identificadas na pesquisa e aos descendentes sobreviventes dos escravizados pela parte que o Guardian e seus fundadores tiveram neste crime contra a humanidade”. Observe a escolha de palavras: não é um crime contra as pessoas negras, é um crime contra a humanidade. A Scott Trust também pediu desculpas por suas primeiras posições editoriais que serviram para apoiar a indústria do algodão e, portanto, a exploração de pessoas escravizadas.

O pedido de desculpas veio acompanhado de um programa de reparação que inclui um fundo de 10 milhões de libras (equivalente a 62 milhões de reais). Parte será destinada a comunidades de descendentes de escravizados ligadas aos fundadores do Guardian no século 19, após consulta a especialistas em reparações e grupos comunitários. A outra parte será investida em quatro frentes: (1) aumentar a conscientização sobre a escravidão transatlântica e seus legados por meio de parcerias em Manchester e globalmente; (2) diversidade de mídia; (3) pesquisas acadêmicas e (4) o escopo e a ambição das reportagens do The Guardian.

A quantidade de grana parece pequena frente ao tamanho do problema a ser reparado e a quantidade de iniciativas anunciadas. Mas é um começo e deve servir de exemplo para outras empresas de mídia e para o meio corporativo. 

Um marco, um começo

A iniciativa do Guardian é um marco para o jornalismo. Ao não reconhecerem o racismo como um problema também do campo da comunicação, as práticas jornalísticas o reforçam: quando pessoas negras são retratadas apenas nas páginas policiais e inexistentes nas reportagens de economia; quando dão espaços para colunistas racistas e negacionistas; quando os profissionais negros ainda são uma minoria dentro das redações – os que chegam a cargos de liderança, então, dá para contar nos dedos de uma mão. O jornalismo não só contribui na construção de imaginários (obrigada Glória Maria por seu legado) como também é responsável por definir o que deve ou não ganhar espaço no debate público.

Parte do programa, o Guardian publicou uma série de reportagens especiais chamada “Cotton Capital” –  em uma tradução livre: Dinheiro do Algodão, cultivo que na América colonizada pelos ingleses foi marcado pela mão de obra escravizada. A série explora como a escravidão transatlântica moldou o The Guardian (a organização), Manchester (a cidade), a Grã-Bretanha (o conjunto de países) e o mundo, partindo de uma investigação sobre os próprios vínculos dos fundadores do jornal com a escravidão e seus legados duradouros até hoje.

Ao fazer isso, o Guardian sinaliza que está conectado com as pautas sociais de seu tempo. Está buscando garantir sua própria sustentabilidade no futuro. Olha pro passado para diagnosticar o presente e projetar sua relevância no futuro e, no limite, sua própria sobrevivência pelos próximos 200 anos. 

No Brasil, as empresas de mídia têm anunciado iniciativas que ainda precisam se provar. A Globo, maior emissora de televisão do país, criou uma nova área de diversidade e inovação no ano passado. Entre os maiores grupos de jornalismo, o jornal Folha de São Paulo criou o Comitê de Inclusão e Equidade também em 2022 e um programa de treinamento de jornalistas negros um ano antes – mas constantemente se contradiz quando dá espaço para textos de opinião que flertam com o negacionismo ao falar em racismo reverso, conceito que não existe nas ciências sociais, justificando a ação com uma pretensa pluralidade de ideias. 

Filhas de Glória Maria que somos, seguiremos atentas e trabalhando para que as empresas façam sua parte na reparação que lhes cabe.

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Thais Folego

Sou um corpo negro no mundo buscando como me descrever para além do perfil profissional - uma coisa muito sudestina, né (risos). Enquanto não encontro essa poesia, começo contando quem sou a partir de onde falo: sou uma pessoa negra, mulher, cisgênera, vinda de Mauá (periferia da região metropolitana de São Paulo). Venho de uma família interracial, trabalhadora, amorosa e cheia de contradições: meu pai é preto, minha mãe é branca e isso pauta muito da minha vida. Sueli Carneiro é minha pastora e nada me faltará. Sou associada e colunista da Revista AzMina, membra da Marcha de Mulheres Negras de São Paulo e da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial de São Paulo (Cojira-SP).

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