Guilherme Soares Dias
Um festival de celebração da cultura negra que ocorre há 18 anos ininterruptamente em São Paulo. Essa é Feira Preta que chegou a sua maioridade em 2019 celebrando passado, presente e futuro numa edição no Memorial da América Latina no último fim de semana (7 e 8 de dezembro). Mais de 35 mil pessoas passaram pelo evento, que reúne empreendedorismo, shows, conversas e espaços de inovação.
Um dos maiores diferenciais da Feira Preta é de ser um evento organizado por pessoas negras, que reúne afroemprendedores, artistas negros de sucesso e o mais importante: um público negro, consciente da sua história e lugar, ávido por consumir mais da própria cultura. Isso significa uma massa de pessoas vestindo estampas africanas, com cabelos afros circulando, debatendo, dançando, fazendo negócios e se acolhendo. O Memorial foi considerado por muitos o espaço ideal para o evento que já passou por lugares como Praça das Artes, Anhembi e Centro de Exposição Imigrantes.
Mesmo ocorrendo todos os anos, os organizadores sempre têm dificuldades para encontrar patrocinadores para o evento. Apesar de cada vez mais o tema diversidade ser considerado prioritário para as grandes empresas, falta investimento e prioridade para eventos como a Feira Preta. Há ainda um problema de “unicórnio”, o que significa que essas empresas destinam suas verbas para apenas um evento desse tipo. E nos últimos anos outros foram surgindo e novos devem chegar como é o caso do Afropunk. Isso não impede a Feira Preta de continuar se credenciando como o maior festival do tipo na América Latina.
A idealizadora do evento, Adriana Barbosa, ressalta que, apesar de trabalhar durante todo o ano, o recurso e o espaço saíram menos de dois meses antes do evento. “Tivemos que correr com a produção e a entrega para ter um festival a altura”, afirma. Adriana acredita que “foi a melhor feira de todos os tempos”, que promoveu debates, espaços ligados a economia criativa, empreendedorismo, shows, além de uma exposição contando a história da própria feira.
Antes do último fim de semana, o festival já vinha ocorrendo desde 2 de novembro com diversas atividades como palestras, workshops, exposições, roteiro afro, mentorias. A edição de 2019 foi marcada ainda pela volta de Elza Soares ao palco do evento. Em 2018, ela tentou cantar, mas a estrutura de som oferecida pela Prefeitura de São Paulo falhou. Elza não tinha retorno de som e preferiu não se apresentar. Diante do momento tenso, a cantora anunciou que voltaria a se apresentar na Feira Preta e assim o fez. Ela subiu ao palco por volta das 17h do sábado (7) cantou três músicas próprias com arranjos de rap, acompanhada por dois cantores e fez um bate-papo rápido. Mesmo visivelmente cansada, levou a plateia ao delírio.
O Guia Negro elegeu cinco momentos marcantes da Feira Preta 2019:
1 – Encontro dos blocos/Velha Guarda da Camisa Verde e Branco
Os quatro principais blocos afros de São Paulo Ilu Inã, Ilú Obá de Min, Umoja e Zumbido protagonizaram um momentos épico do festival. Eles desceram a passarela que cruza a Avenida Auro Soares com tambores e toques que arrastaram a multidão até o palco principal e se apresentaram cantando músicas próprias. Já a Velha Guarda da Camisa Verde e Branco se apresentou no sábado junto com o Samba da Laje, numa homenagem a Reinaldo, considerado príncipe do pagode que faleceu em 2019. Ter o grupo foi significativo, uma vez que a feira ocorreu na área próxima de onde ficava o Largo da Banana, importante centro de trocas entre pessoas negras no começo do século 20 e berço do samba em São Paulo. O largo ficava onde hoje está o viaduto da Avenida Pacaembu.
2 – Attooxxa/Larissa Luz
Não dá para falar sobre celebração da cultura negra sem artistas baianos. Attooxxa e Larissa Luz são representantes da nova safra de altíssima qualidade. Larrissa encerrou o sábado com um show que ressignifica músicas que reverenciam os orixás, com pegada eletrônica e rock. Ela convidou Linn da Quebrada que entrou no mesmo ritmo. O balê convidou todos para dançarem. “Trouxe para o show a ancestralidade com um toque afrofuturista, trazendo os timbres eletrônicos misturando com os atabaques. Gosto do trabalho da Linn porque ela também tem esse lance de rasgar a carne, mais visceral e intensa”, resume Larissa. Já o Attooxxa encerrou os trabalhos do domingo e colocou todos para “meter dança” e jogar a “popa da bunda” pro alto. O grupo mexeu com o público de um lado pro outro e abriu rodas em que todos se jogavam, como ocorre nas apresentações de Salvador e Brasil afora. “Foi um encontro de pessoas negras para festejar e entender nosso lugar no mundo. É muito especial estarmos nesse processo e fazer esse baile cheio de groove”, destaca Osmar Cardoso, conhecido como Ozzy, baterista e vocal do Attooxxa.
3 – Empreendedores
A feira é um momento de grande visibilidade para os empreendedores negros. Muitos fazem coleções exclusivas e tem o evento como o momento de maior venda e network do ano. Um exemplo é o Ateliê Xongani, uma das referências em moda afro, que teve um crescimento exponencial a partir da feira. Em 2019, 170 empreendedores, de 10 estados brasileiros, além de países como Gana e Senegal comercializaram roupas, acessórios, instrumentos musicais, objetos decorativos e artesanato. São marcas como Xeidiarte, Bastt, Liana D’AfriKa, Berimbau, Da Lama, Afra Design, Kuavi, Art Abana, Hibouwax, Ojire Moda Afro. “Foi um lugar que pudemos encontrar uma diversidade grande e chegar a um número maior de pessoas, que vieram de fora ou que vão todos os anos na feira. Há uma troca muito grande com outros empreendedores. É importante sentir esse poder econômico negro crescendo”, afirma Marie Reine-Adélaide, responsável pela Hibouwax no Brasil. Empreendedores da área de gastronomia como Dona dos Doces, Chermoula, Baobá, entre outros deliciaram o público com suas comidas.
4 – Preta Fala/Preta Inova
Os debates sobre negritude trazem a parte mais reflexiva do evento. A biblioteca do Memorial da América Latina ganhou diálogos e lançamento de livros de escritores negros, como Preta Rara. Entre os temas estavam empreendedorismo periférico; presença negra na gastronomia; futuro das políticas públicas; educação financeira; potência da estética negra; e gêneros. “Refletimos como o trabalho da população negra, dos movimentos sociais, contribuiu para que todos se empoderem. Pensamos na organização do dinheiro, em como cobrar pelo trabalho. Além de como essa valorização da estética negra tem a ver com uma maior autoestima”, resume Pri Fonseca, produtora do espaço. Já o Preta Inova reuniu empreendedores que estão inovando e mudando a cara dos seus setores de atuação. Foi o caso da Empregueafro, Infopreta, Preta Lab, Perifacon, Conta Black, Diaspora.Black, Vale do Dendê, Black Bird Viagem, Brafrika, entre outros.
5 – Espaço Erê/Espaço Bem star
Um dos debates mais atuais sobre a população negra é o bem-estar e saúde mental. Em 2019, a feira contou com o Espaço Erê, que trouxe cuidadores com atividades lúdicas afro referenciadas para as crianças e bebês. “Pensamos no nosso futuro, trazendo o cuidado ancestral. Era um lugar para a família, com acolhimento durante o evento. A ideia era que nenhuma criança ficasse sozinha. Foi um cuidado coletivo para que os pais pudessem curtir a feira junto com os filhos”, conta Rosyane Silwa, curadora e produtora das atividades. Já o Espaço Bem-Estar trouxe atendimentos como quick massage, reiki, yoga, Yoni das Pretas, além de oficinas de chás, garrafadas, práticas e rodas de conversas, entre outros. “Falamos sobre cura. Tivemos atendimento, conversas, práticas integrativas de saúde e debates sobre mente sã”, conta Silwa.
Fotos: Monica Silva, Kelly Carvalho e Dafne Jones/Terra Preta Produções