Fundador da Vale do Dendê – aceleradora de negócios de Salvador – constrói pontes entre os negócios e o social
Guilherme Soares Dias
Um sorriso acanhado estampa um rosto simpático e sempre disposto a conhecer novas iniciativas de empreendedorismo. O trabalho desenvolvido pelo publicitário baiano Paulo Rogério Nunes o fez ser escolhido para estar em uma reunião privada que o ex-presidente do Estados Unidos Barack Obama fez com onze lideranças jovens brasileiras. Paulo era um dos três convidados negros, o único ativista, sentou-se à direita de Obama e falou sobre a questão racial no Brasil, das oportunidades econômicas, da cobertura da mídia e sobre Salvador. Uma espécie de resumo das pautas que vem tratando ao longo de sua vida.
A reunião rendeu um convite para falar na abertura da Fundação Obama em Chicago para uma plateia composta por 500 lideranças do mundo todo, pessoas como Michele Obama e Príncipe Harry. A proximidade com a Fundação Obama fez Paulo ter seu nome ligado ao presidente. As pessoas próximas brincam se referindo a ele como o “amigo do Obama”. “Teve uma empatia muito grande entre nós. Não sou amigo dele, mas fiquei bem surpreso com esse segundo convite”, pontua o publicitário, sem perder a modéstia.
Paulo cresceu no bairro do Alto da Terezinha, no subúrbio de Salvador, aprendeu inglês conversando com gringos no Pelourinho “a melhor escola do mundo”, passou um período em um Centro de Pesquisas de Harvard, até entender que o lugar de onde vinha era um berço de criatividade e economia criativa. Afinal, se nos Estados Unidos existe o Vale do Silício, Salvador seria o Vale do Dendê, nome da aceleradora de negócios que fundou ao lado de Ítala Herta, Hélio Santos e Rosenildo Ferreira.
A Vale ajuda afroempreendedores a alcançarem novos voos em seus negócios. As histórias que vem acumulando nesses últimos anos viraram o livro “Oportunidades invisíveis – aprenda a inovar com empresas que apostam na diversidade e geram riqueza”, que está sendo lançado pela Matrix Editora. “Escrevi sobre inovação e diversidade. São dez empreendedores que viram na diversidade uma possibilidade de inovar: Diaspora.Black, Lady Drive, Rádio Yandê, Hand Talk, Viajay, Makeda, Xongani e Empregueafro. Conto as histórias de vida por trás das empresas. São desde lideranças indígenas que estão criando tecnologia da comunicação, mulheres que estão criando tecnologias voltadas para o mundo feminino, plataformas digitais negras”, reforça.
É o primeiro livro desse baiano cheio de histórias para compartilhar. “Mostro também que Salvador pode ser a capital da inovação diversa. Um lugar no Brasil que tem potencial, que uma empresa negra pode fazer sucesso. O livro vai me ajudar a divulgar essas ideias para o mercado”, acredita. Ele classifica a publicação como técnica, de educação e negócios. “Vai mostrar para as pessoas como olhar a diversidade com outro ângulo. Lá fora tem muita literatura com esse assunto, mas aqui ainda não. Não vai ser um livro referência, vai ser um livro guia”, classifica.
Paulo afirma que sua inquietação é que o tema da diversidade historicamente esteve no aspecto social, mas que vai além disso. “As empresas apoiam projetos sociais porque querem que as pessoas as vejam com iniciativas nesse sentido, mas esse é apenas um lado da moeda. O outro lado é que quanto mais inovação e mais diversidade as empresas tradicionais tenham e quanto mais investirem em diversidade, mais inovação a gente vai ter no mercado e na sociedade, porque pontos de vista diferentes, conseguem apresentar soluções diferentes”, defende.
Apesar de não ser biográfico, o livro começa contando como o publicitário também é um exemplo da inovação e da diversidade, que conseguiu ver caminhos que o mercado nacional não estava enxergando. Além de publicitário e fundador da Vale do Dendê, Paulo é professor da Universidade Católica do Salvador, onde foi aluno; conselheiro do Olodum e atua como consultor de diversidade de grandes empresas. “Eu trabalho esse relacionamento com as marcas. Talvez esse seja um diferencial que eu trago, que é esse pé no mercado e outro no social”, define.
História. Filho de um funcionário público e uma professora primária, que se esforçavam para pagar escolas particulares, Paulo criou grupos de grafite na adolescência, inspirado por filmes norte-americanos e pelo hip hop. Era uma forma de sair do subúrbio e ir para “a cidade”. “Eu sempre brinco que isso foi o meu pé para a publicidade, porque o marketing e a pichação têm a mesma lógica, de você marcar o território, de apresentar para o mundo, de se expressar”, considera.
Ele cursou a universidade com uma bolsa e passou a se dividir em três empregos diferentes. Trabalhava como programador a partir de 1998, quando a internet se expande no Brasil. “Foi um click na minha vida, a minha virada de chave. Estudava em colégio particular, mas no subúrbio. Quando eu comecei a trabalhar com internet, passei a visitar os bairros ricos e ver a realidade de lá e a do subúrbio, mundos completamente diferentes”, lembra. A disparidade social fez com que Paulo começasse a ter consciência política e iniciasse um trabalho de ativismo no bairro em que morava. “Eu sempre gostei muito de ler. E as pessoas falavam que eu tinha que fazer faculdade, mas eu não entendia que era uma coisa pra mim, não estava no meu horizonte, ninguém da minha família tinha feito. A pauta dos meus amigos era ganhar dinheiro como mototaxista ali no bairro mesmo”, afirma.
Fez Publicidade na Universidade Católica do Salvador e era um dos alunos mais engajados. Ao mesmo tempo em que percebia não ter professores negros. Uma organização chamada Steve Biko, primeiro pré-vestibular para negros no Brasil, lança em 2004 um programa para lideranças jovens. Paulo ingressa nos últimos minutos e passa a ter acesso à elite intelectual negra de Salvador, como Luiza Bairros, Elias Sampaio, que eram referências nacionais e davam uma mentoria no programa. A ideia era preparar pessoas para liderança no terceiro setor e na política. Por meio do programa, Paulo foi estagiar na TVE, estatal do governo da Bahia, enquanto ajudava a fundar em 2005 o Instituto Mídia Étnica, que reunia um grupo de comunicadores preocupados justamente com a representação negra na mídia.
Primeiros voos. Ainda em 2004, junto com outros ativistas brasileiros, Paulo faz a primeira viagem internacional: vai para Alemanha a convite de uma organização que o leva para participar de um congresso em que um dos temas era o afrofuturismo. Já em 2005 o soteropolitano do Alto da Terezinha vai para a Califórnia, nos Estados Unidos, em um projeto que levava uma liderança jovem e uma madura para conhecer a comunidade negra afroamericana. “Foi quando vi o poder político da comunidade afro dos Estados Unidos e sua história. Fui conhecer museus, personalidades e fiquei muito tocado em ver negros de classe média, que eu não via no Brasil”, lembra.
Ele foi morar nos Estados Unidos em 2011, quando recebeu uma bolsa da Fulbright para estudar após concorrer com pessoas do mundo todo. Fez um curso de aperfeiçoamento profissional em que estudou novas mídias. Os Estados Unidos tinham na época uma dezena de TVs negras e várias rádios e revistas. Fez estágio, proporcionado pelo programa, dentro de um centro de pesquisa no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). “Consegui ter uma relação maior com Boston e fui construindo interface com o pessoal de Harvard. Voltei para o Brasil e trouxe a tecnologia de lá”, diz. O publicitário embarcou com o Vojo, que mandava conteúdo por meio do telefone, sem precisar de internet ou computador. “Consegui um apoio e implantamos na Ilha de Maré, em Salvador, depois escalou para cinco estados do Brasil, levando a tecnologia para comunidades tradicionais, quilombos e favelas”. Era um momento da migração dos smartphones.
O sucesso do projeto fez com que recebesse um convite para apresentá-lo em Harvard em 2013. Nesse momento, conheceu um programa de afiliados que realiza pesquisas e consultorias e foi convidado a se candidatar a uma vaga para fazer parte desse Centro. “Veio aquele pensamento será que isso é pra mim. Aquela coisa que muitas pessoas negras se questionam sempre. Nós que somos de grupos mais discriminados sempre achamos que não é pra gente. Tinham brasileiros lá, mas não se pareciam comigo”, afirma. Paulo foi afiliado da universidade norte-americana entre 2015 a 2018. “Não estudei em Harvard, eles me convidaram para contribuir com o centro de pesquisa Berkman Klein Center, em que trabalhei o discurso do ódio e de como os algoritmos podem perpetuar o racismo”.
Vale do Dendê. Questionado sobre como surge a vontade de trabalhar com empreendedorismo e fundar a Vale do Dendê, Paulo lembra que sempre foi empreendedor. Com 13 anos montou um espaço de vídeo games, uma vez que no bairro onde morava ninguém tinha o equipamento em casa. “Minha mãe tinha uma barraca de vender doce e eu trabalhava com ela. Já dei aula de informática para a comunidade e também de gráfica rápida. O empreendedorismo sempre esteve comigo”, afirma.
Nos últimos anos, o publicitário tentou alinhar a lógica empreendedora de fazer, criar ter resultados com o trabalho social e político. A Vale do Dendê traz essas duas matérias-primas por ser um negócio de impacto social. “Temos uma missão que é transformar Salvador em polo criativo e contribuir com a participação de mais diversidade no cenário empreendedor nacional”, afirma.
Paulo diz que a vivência nos Estados Unidos o fez entender melhor sobre black money, organizações e empresas negras com dezenas de anos. Ele chegou a ficar tentado em continuar fora, fazendo doutorado. Mas preferiu voltar e aplicar o que tinha aprendido aqui. “Se todo mundo que tiver a oportunidade de fazer algo no Brasil sair, nada flui”, acredita.
Embaixador da Bahia. Paulo diz que percebeu que Salvador era uma cidade única com um potencial que nenhuma outra cidade tem, quando começou a frequentar o Pelourinho para aprender inglês aos 15 anos. “Descobri a cidade pelo olhar estrangeiro. Quando todo mundo falava mal de Salvador, eu via um alemão dizendo que Salvador era incrível”, afirma. Nessa fase, Paulo pegava o mapa mundi e ficava imaginando como era viajar para aqueles lugares. Começou a estudar inglês por conta própria. Pegava o dicionário e ficava tentando gravar as palavras. “Pensei que o melhor lugar para aprender inglês era o Pelourinho, porque você conversa com estrangeiros e gratuitamente. Ia pra lá e ficava sendo guia informal e falando inglês. As pessoas pagavam ingresso de locais de cultura pra mim e surgia uma relação de amizade, com laços internacionais, que preservo até hoje”, conta.
O fato de ter viajado muito profissionalmente o fez ser uma espécie de embaixador da Bahia. “Eu tinha que falar das coisas que estavam acontecendo aqui. Fui desenvolvendo essa paixão, essa vontade de estudar mais a Bahia”, conta. Em 2012, quando foi para os Estados Unidos percebeu que há muitas cidades inovadoras. Detroit, por exemplo, não será mais um polo automotivo, então precisou se tornar uma cidade de inovação. “Pensei porque Salvador não pode ser uma cidade global? Comecei a conversar com pessoas influentes, de fora, fazendo uma pesquisa e a identificar que tinha algumas oportunidades”, afirma.
Quando questionado porque Salvador é uma cidade única, Paulo Rogério repete, sem hesitar, como num mantra: “cultura negra, cultura negra, cultura negra”. Ele lembra que a cidade tem uma cultura com essência africana, mas que não é exatamente como a vista no continente. “A cultura negra foi vista como negativa ou como se fosse um favor dar dinheiro para bloco afro, por exemplo. Não é considerado uma inovação, algo único. Mas essa cultura é boa para o PIB da Bahia”, considera.
Por conta da importância, o fundador da Vale do Dendê defende que o setor cultural tinha que ter um papel mais elevado na gestão de recurso. “Afinal, é uma cidade que vende cultura. Isso faz Salvador ser muito próxima de Nova Orleans e Atlanta. A capital baiana reúne história, praias, naturezas e a joia da coroa que é a cultura negra, que é preservada aqui de uma forma que não foi em alguns lugares da África”, ressalta.
À Vale do Dendê cabe apoiar empreendedores locais a ter mais visibilidade e conseguir investimentos para seus negócios. “Tivemos resultados e alguns a gente só vai conseguir ver lá na frente porque empreendedorismo é plantar sementes e se modificar também. Afinal, percebemos que o problema não é o acesso a capital, a tecnologia, mas sim o psicológico, se entender como empreendedor, como startup, como inovador”, afirma. Um dos exemplos citados por ele é de uma participante da aceleração que vendia escondida na praça de alimentação de um shopping e agora entra pela porta da frente, de salto alto, empoderada para lançar um produto. “Isso foi o maior prêmio para nós”, comemora.
Paulo se considera um “sonhalista”, que gosta de sonhar, de pensar coisas que podem acontecer. “Eu vivo 24h no que eu me proponho a fazer, porque a gente que trabalha com setor social, tem que dar 10 vezes mais a nossa energia do que quem trabalha no setor corporativo, porque estamos trabalhando com uma missão social, então, nossa responsabilidade é maior”, considera. O publicitário cita uma frase que Madre Teresa de Calcutá falava quando estava pegando os pobres na rua: “‘Eu não faço isso por nenhum dinheiro na vida’. Eu também não”, afirma. Ele diz que não faz o papel de Organização não-governamental. “O que faço é tentar mostrar que as empresas estão tendo uma visão equivocada das coisas, quando a pessoa não contrata um negro para sua empresa, ela está perdendo a oportunidade de dialogar com o mercado negro, ou de ter ideias de pessoas diferentes, de histórias de vida diferentes”, considera. Dedicado ao que se propôs, Paulo gosta de trabalhar, mas também de viajar, conhecer pessoas, ouvir histórias, mais do que falar, apesar de ser um palestrante frequente sobre o tema diversidade.
Os holofotes que têm recebido, convites para palestras, entrevistas para programas como o de Pedro Bial são importantes, mas não é o que o move. “Não quero ser pop. O que me move é realizar. Tive uma infância difícil e me entender como negro foi um processo. Parece clichê, mas não acho que eu estou fazendo algo para mim. Estou dando a minha contribuição para um processo que é maior do que eu”, considera. O fundador da Vale do Dendê também afirma que está devolvendo o que recebeu. “Tive sorte também. Quando eu vejo um jovem, que de alguma forma se espelha ou tem alguma referência em mim, eu estou fazendo só a minha obrigação, porque é um ciclo. Minha avó era lavadeira e eu fui para Harvard, é uma exceção. Então se eu não conseguir contribuir com as pessoas, que estão crescendo, eu seria no mínimo ingrato com a vida. Por isso não fico me envaidecendo”, finaliza.01
Lançamento do livro “Oportunidades invisíveis” – Paulo Rogério Nunes
5/11 – Livraria Cultura São Paulo -19h. Av. Paulista, 2073
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Eu gostei muito de saber que existe esse movimento. E sou especialista em negócios, se precisar de ajuda, pode contar comigo para apoiar o movimento.