Qual é a sua paisagem predileta no mundo?

No caminho de Alcalá La Real para Granada, no sul da Espanha, uma curva na estrada abre para um vale. Dele, uma muralha natural de montanhas cerca uma região disputada entre árabes e espanhóis durante séculos. Mas uma abertura dá acesso ao vale importante para chegada e saída dos povos que dominaram essas terras. Esse lugar coberto de verde e nadas é a paisagem predileta de Ofélia.

Ela é amiga de uma amiga da minha prima. Mesmo com uma ligação tão distante, me recebeu em casa como se fôssemos velhos conhecidos. Um apartamento enorme de uma família grande espanhola, mas bem brasileira na maneira de ser: calorosa, receptiva e com um patriarca com personalidade forte. Numa pequena viagem de carro, Ofélia fala sobre viagens, sobre a vida, sobre o lugar, as peculiaridades da Espanha… E com um sorriso enorme no rosto me revela, ao passarmos por aquela curva, que esse é o seu lugar predileto no mundo.

Uma mulher que já viajou para muitos países, morou em Londres, no Brasil, mas que tem como paisagem predileta esse local que é tão ela. Vai ser difícil esquecer esse vale de montanhas: o lugar da Ofélia no mundo. Essa conversa me fez pensar que todo mundo tem um lugar especial. Todo mundo tem uma paisagem que te liga, te inspira, te conecta. Te faz suspirar toda vez que visita. Nós podemos e devemos ter muitos lugares como esses. Mas, com certeza, você deve ter pelo menos um cenário que é mais representativo de/para você. Qual é a sua paisagem predileta no mundo? Já parou para pensar?

A minha é uma ilha perdida no meio do Rio Paraguai. Numa curva, onde ele faz um “L” e quando vista de Porto Murtinho parece o mar, por não se ver o fim. Esse foi o meu primeiro e único mar na infância. Eu frequento essa esquina de mundo desde a barriga da minha mãe, provavelmente. Num casarão da minha família nas proximidades do rio foi comemorado meu aniversário de 1 ano. Aos 4, eu tenho uma foto pousando faceiro no dique de contenção que envolve Porto Murtinho e dá vista para a Ilha Margarida, já no Paraguai… E todas as vezes que eu preciso pensar para onde eu vou, quem eu sou, eu volto e me sinto reconectado. Essa fronteira é o meu lugar predileto. A minha paisagem preferida.

Quero falar um pouco mais dela. O relato que segue abaixo é uma descrição da última vez em que estive lá. (Meu maior medo desse texto é tentar resumir um ambiente tão representativo para mim em frases. Todos os significados dele não cabem em palavras, mas esse texto precisava ser escrito):

Do tempo que parou, das casas de madeira empilhadas para conviver com a característica da região: a pulsão das águas do Pantanal, que vive de cheias – que inundam parte da ilha – e da seca – que devolve terras e campos de futebol.

Da água de um rio turvo por natureza que bate mais forte contra a ilha quando os barcos passam. São os navios e lanchas que carregam turistas e que movimentam um lugar que vive da prosa longa, segredos contados ao pé do ouvido e de tererés de tardes todas. Até a vida se esgueira aqui antes de passar.

Dias quentes, ensolarados, encobertos por um céu azul e nuvens que se disfarçam de desenhos. Alternados por noites estreladas num céu que parece ser possível tocar. Mas não se engane com o calor: nos anúncios de frentes frias da TV, os ventos do sul sempre atravessam a planície pantaneira e chegam até aqui gelando os ossos.

Do outro lado do rio, Porto Murtinho é uma cidade que se finge de forte e sobrevive aos diferentes ciclos econômicos (da erva-mate, do porto, da carne…) que vão e vêm e a deixam resignada por já ter sido mais rica e próspera. Hoje, tudo é de uma simplicidade desconcertante. Nesse fim-esquina-fronteira de mundo a riqueza vem de dias longos e preguiçosos, contornados pela decadência dos prédios antigos e cantados pelos pássaros, sapos e grilos do Pantanal. E dessa lonjura de brejos vai brotando um outro tempo de vida, beleza e poesia…

(Ilha Margarida, 9-11-2016)

*Esse texto faz parte do livro “Dias pela Estrada – cenas de uma vida e de um mundo em movimento”, lançado por esse jornalista e também publicado pelo Jornalirismo.

LIVRO: “Dias pela Estrada – cenas de uma vida e de um mundo em movimento” (Multifoco, 2017, R$ 35)
AUTOR: Guilherme Soares Dias
À venda no site da editora, clicando aqui

Manual dos nadismos indispensáveis

 

 

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Redação

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