‘Quem me Leva para Passear’: novo romance de Elisa Lucinda aborda questões sociais com leveza

Divagação. Num contexto de fluxo demasiado de informações, correria desenfreada, pressa e sobrecarga, quase não sobra espaço para praticar essa palavra, que parece devagar demais pra tanto estímulo. Não é o caso de Edite, personagem principal de ‘Quem me Leva para Passear’ (Editora Malê, 2021), novo romance de Elisa Lucinda, onde os pensamentos são co-protagonistas de uma narrativa leve e atenta ao panorama sócio-político do Brasil atual.

Se em determinados momentos o ser-humano pensa muito antes de falar, aqui nós encontramos o oposto: fluxo sem censura (ou quase) de 113 pensamentos que vagueiam por múltiplos temas. Identidade, sexo, sociedade, política, violência e amor, são algumas das sinapses que pululam na mente de “Ditinha”. Ora reflexiva, ora contadora de histórias, é uma mulher negra que mora em um bairro popular do Rio de Janeiro e tem personalidade ávida, inquieta e questionadora.

Isso o leitor já sabia no ‘Livro do Avesso’ (Editora Malê, 2019), antecessor da série ‘O Pensamento de Edite’. O que se mostrou inédito nesse novo compilado de divagações é o fato de Edite ser cozinheira, enriquecendo as narrativas com episódios pitorescos, como um no qual ela viaja aos Estados Unidos e cozinha para Barack Obama e na casa do ex-presidente debate com Michelle Obama se a melhor moqueca é baiana ou capixaba. Outro elemento que se acentua é a ligação de Edite com os orixás, citados de maneira periódica, o que abre espaço para reflexão e discussão sobre a intolerância religiosa, além da naturalização das divindades na vida de um sujeito.

E por falar em problemáticas sociais, a cozinheira destempera as hipocrisias e corrupções que são prato cheio na sociedade de aparências. Neste cardápio há “macumbeiros incubados”, políticos que desviam verba pública, mulheres ricas que viajam para realizar aborto em clínicas estrangeiras ou mandam as babás acompanharem seus filhos na festinhas de criança. Temas mais pesados como homofobia ou a violência que abate a juventude negra também não ficam de fora da discussão.

Por meio das divagações, Elisa consegue apresentar uma personagem múltipla, que fala sobre temas socioculturais de forma leve, como quem faz uma brincadeira intencionando dizer algo sério. Ainda que enfatize questões identitárias, não soa planfletária, nem mesmo no momento que explicita suas afinidades político-partidárias. O pensamento é pueril, brincante, bobo, e ao mesmo tempo crítico, analítico e questionador. É como um dos versos da sua poética: “Preciso da besteira para obter a glória”.¹

A escritora vem fazendo uma série de lançamentos presenciais, passando por diversas capitais brasileiras, como Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e Vitória. Nessas ocasiões há leitura de alguns dos pensamentos, estratégia que Elisa usa na hora de compor o livro para avaliar a recepção dos textos. O livro pode ser lido em uma sentada, devorado. Contudo, numa “humanidade devoradora de presentes”, Edite (ou Elisa) adverte ao leitor: “a pressa é inimiga da refeição”. Mais que degustar os pensamentos, reflita sobre.

¹Poema Alvo, Livro ‘A Fúria da Beleza’ (Record, 2006)

Quem me Leva Para Passear
Elisa Lucinda, Editora Malê (2021)
196 páginas
R$48
Adquira aqui

LEIA MAIS:

‘Clínica do Impossível’: Lucas Veiga aborda perspectivas sobre saúde mental para pessoas negras em livro

 

Compartilhe:
Avatar photo
Lucas de Matos

Olá! Eu quero te dar as boas-vindas à minha coluna. Sou um comunicador baiano que ama falar sobre gente, e por aqui você vai encontrar muito assunto sobre cultura, comunicação, dicas de leitura, e mais. Sou autor de 'Preto Ozado', livro que já vendeu mais de 1.600 exemplares e se tornou um minidocumentário. Viajo pelo Brasil em atividades literárias, participando de festas como FLICA, FLIP e FLIPELÔ. Falo sobre cultura para meus 22 mil seguidores no Instagram! Vamos conversar? 💬

Artigos: 33

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *