Sonhos de um homem negro

Sonho:

  1. uma série de pensamentos, imagens e sensações que ocorrem na mente de uma pessoa durante o sono.
  2.  Uma aspiração, ambição ou ideal acalentado.

Quando eu era mais novo, sempre tinha um sonho recorrente; nesse sonho, eu voava sobre meu bairro – A Ilha do Governador, localizado na zona norte do Rio de Janeiro.

Assim como um Ícaro, mas sem alcançar o sol, voava acima de todas as outras pessoas que, de lá de cima, pareciam miniaturas de gente. Esses sonhos sempre eram tão vívidos que me lembro de sentir o cheiro da maré soprado suavemente vindo da Baía de Guanabara. De lá de cima, tudo parecia mais seguro.

Segurança era tudo que não existia na minha vida na época. Instabilidade econômica no país, falta de democracia, racismo e violência eram parte do circo de horrores que era ser um menino negro nos subúrbios do Rio no começo dos anos 90.  Pelo menos, lá de cima ninguém poderia me tocar eu pensava. Talvez nos meus sonhos, fosse o único momento em que eu me sentisse verdadeiramente livre.

Todos os dias o sol nascente me desafiava raiando implacavelmente nas manhãs quentes cariocas. Eu, em geral, acordava com os sussurros aterradores que emanavam do radio relógio vermelho digital da Cassio que descansava na minha mesa de cabeceira. A cada amanhecer, o calor tropical e o Cássio agregavam forças e insistiam em me trazer de volta à realidade.

Longe dos sonhos, neste universo, eu acordava um negro magrinho e sem asas, acorrentado ao chão pelo peso de 400 anos de minha melanina e desdém do mundo lá fora.

É lindo que o nosso povo sonhe.  

Mulheres Ioruba, Pintura de Joe Amenechi | Artmajeur

Sonhar é importante. Ter um objetivo para onde queremos ir também é essencial.

No hinduísmo, um sonho é um dos três estados que a alma experimenta durante sua vida; os outros dois estados são os de estar acordados ou dormindo. Freud teorizou que os sonhos refletem a mente inconsciente do sonhador e, especificamente, que o conteúdo do sonho é moldado por desejos inconscientes. Carl Gustav Jung e outros expandiram a ideia de Freud de que o conteúdo do sonho reflete os desejos inconscientes do sonhador. Assim como os chineses, os iorubás acreditam que os sonhos podem ser interpretados como bons e ruins, dependendo das circunstâncias. Religiões de todo o mundo têm, de uma forma ou de outra, interpretações sobre sonhos. No entanto, minha interpretação favorita de sonhos venha Talmude: “Não vemos as coisas como são, vemos as coisas como somos”

Talvez nada possa ser mais um sinal do tempo em que vivemos do que nossos sonhos e aspirações.

Muito gente do nosso povo hoje, infelizmente, sonham com o que comer, sonham em um lugar onde dormir e sonham em ter o mínimo de dignidade. Para muitos esses sonhos são constantemente negados. Minha bisavó, provavelmente, sonhava com a liberdade de escolher um telhado para morar. Minha avó sonhava com uma educação para seus filhos e um emprego para ela. Meu pai e minha mãe sonhavam com uma educação melhor para eles e, se tivessem sorte, um diploma universitário. Hoje, sonho com um doutorado em uma universidade internacional. Como você pode ver, os sonhos são voláteis, circunstanciais e, às vezes, simplesmente uma forma de sobrevivência.

Século passado

Saí do Brasil no início dos anos 2000, então a maioria das minhas memórias brasileiras são do século passado. Naquela época, os sonhos populares eram sobre luas de cristais que em nada contribuíram com nosso povo. Sonhar no Brasil sempre teve uma cor, e essa cor é o branco. Pensando agora, seria justo que os sonhos também tivessem gênero, classe e habilidade. O único objetivo de uma sociedade desigual, machista e racista é manter aqueles sem poder, impotentes e aqueles com dinheiro no controle. No Brasil, para pessoas como eu, sonhar ainda é um ato subversivo.

Sonhos para afro-brasileiros existiam com termos e condições. Os nossos sonhos são o pesadelo de uma elite econômica mesquinha e limitada. Lembro-me de estar em uma classe na quinta série. Minha professora, Sra. Nancy, com seus grandes olhos verdes e cabelos grisalhos e amarelos, me disse que ‘pessoas como você têm bons talentos com as mãos’. Para ela, poderíamos sonhar em ser jogador de futebol, tradicionalista ou sambista, mas não nos atrevemos a ser dentista ou pequeno empresário. Isso não foi permitido.

***

Qualquer um pode sonhar da maneira que achar melhor. Temos o direito de imaginar nosso futuro com infinitas possibilidades, mas devemos distinguir duas coisas: O que é um sonho e quais são as consequências desse sonho
Quando eu vi o clipe do irmão negro que dissera recentemente na TV que: ‘ele sempre teve o sonho de ser ‘rico e famoso’, eu percebi como ele estava caindo na armadilha da sociedade meritocrática branca.

Sonhos inatingíveis!

O capitalismo vende ideias inatingíveis de riqueza além de padrões impossíveis de realidade. Esses sonhos sem rumo são tristes. São vidas sem conteúdo baseados no imediatismo eurocêntrico. Uma vida que não tem objetivos comunitários. Uma vida de conquistas individualistas que só podem levar a pessoa a uma existência vazia. Uma vida de puro solipsismo. Dai me pergunto: para que serve o sol, se não há planetas? Ao dizer o que disse, ele declarou suas intenções. Como ele pode ser rico e famoso? Por fazer o quê? Por quê? Fama e riqueza não são os sonhos. É a consequência do sonho.

Aspiração

Na segunda definição, um sonho é uma aspiração – um objetivo em direção a algum lugar ou algo. Eu poderia dizer que sonho em ser feliz, mas, novamente, esse não é o objetivo. Este é o resultado dos meus propósitos. Uma pessoa pode sonhar em ser cirurgiã, carpinteira ou presidenta, mas ficar ‘rica e famosa’ só pode ser a consequência do seu sonho. Não é o sonho em si.

Uma vez que o sonho é sonhado, o sonho deve ser construído com planejamento, trabalho e dedicação. A decisão de ousar sonhar e assim mudar a nossa realidade, é uma decisão corajosa. Uma vez que essa ideia zarpe, pode consumir a vida e comer a alma. Sinceramente, acredito que mudando nosso destino, mudamos o destino de toda a humanidade. E isso vale a pena.

O sonho é a jornada, o sonho é vivido na estrada sinuosa, e é reconstruído e construído a cada passo do caminho de novo e de novo.

Obviamente que podemos sonhar com o que quisermos.

Atravessando o Atlântico em direção às Américas, escravizados e presos nos Navios Negreiros, o principal objetivo de nossos ancestrais que aqui viviam era sobreviver. Sim, eles também sonhavam, mas com tecnologia ancestral, amor e bastante planejamento.
Meritocracia é uma falácia, e sem sorte (muita), oportunidades, dedicação, trabalho duro e perseverança, o sonho é insustentável.

Como disse Maya Angelou : “Uma pessoa é o produto de seus sonhos. Então, certifique-se de sonhar grandes sonhos.”

Irmãos e irmãs, sonhem!!! Sonhe o quanto quiser, mas pergunte a si mesmo para onde quer ir, por que quer ir? Com quem você quer ir? Mesmo diante adversidades inimagináveis, nossos ancestrais ousaram em sonhar. Eles planejaram e executaram sua estratégia de forma brilhante, e, por isso, estamos aqui. Na verdade, nossos antepassados sonharam ‘nós’.

Há um provérbio africano que diz: ‘Nossos sonhos são as vozes de nossos ancestrais.’ O que eles estão sussurrando para nós agora? O que estamos sonhando para nós mesmos e para a próxima geração?

* ‘ Duerme , durme negrito ‘ é uma música de Victor Jara imortalizada pela voz de Mercedes Sosa.

** Uma versão desse texto foi publicada na Australia para a Puentes Review

Guido Melo é um autor multilíngue afro-brasileiro-latino, poeta e facilitador de oficinas literárias baseado em Naarm (Melbourne). Atualmente cursando um Bacharelado em Letras e Mídias Digitais na Victoria University, seus textos podem ser encontradas nas revistas Meanjin , Overland, Kill Your Darlings, Peril, Colournary Magazine, Mantissa Poetry, Ascension Magazine, SBS Voices, SBS Portugues, Poesia Cordite dentre muitas outras publicações. Guido é integrante do Movimento de Literatura Sweatshop, colunista do Negrê e do Guia Negro News alem de ser colaborador das antologias Growing Up African in Australia (Black Inc., 2019) e do Livro Racism: Stories on Fear, Hate & Bigotry (Sweatshop, 2021).

Para mais, siga Guido Melo no Instagram & Twitter

LEIA MAIS:

Como é ser negro e brasileiro na Austrália

 

Compartilhe:
Avatar photo
Guido Melo

Guido Melo é negro, nordestino e está radicado na Austrália desde 2003. Ele é um autor multilíngue afro-brasileiro-latino, poeta e facilitador de oficinas literárias baseado em Naarm (Melbourne). Atualmente cursando um Bacharelado em Letras e Mídias Digitais na Victoria University, seus textos podem ser encontradas nas revistas Meanjin , Overland, Kill Your Darlings, Peril, Colournary Magazine, Mantissa Poetry, Ascension Magazine, SBS Voices, SBS Portugues, Poesia Cordite dentre muitas outras publicações. Guido é integrante do Movimento de Alfabetização Sweatshop, colunista do Negrê e do Guia Negro News alem de ser colaborador das antologias Growing Up African in Australia (Black Inc., 2019) e do Livro Racism: Stories on Fear, Hate & Bigotry (Sweatshop, 2021).

Artigos: 6

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *