Uanga: a arte feiticeira de J. Cunha

Ao pensar na concepção do Museu de Arte Moderna (MAM) da Bahia, a arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992) preconizava a ideia de “Museu-escola”, um espaço de fruição de arte e trocas de ideias entre criador e público, e no qual também houvesse uma relação próxima com o povo. E para quem talvez ainda não considere o museu como uma boa pedida de um passeio cultural, nada mais convidativo que o feitiço das cores de J. Cunha.

Em ‘Uanga’, exposição que celebra os 60 anos de carreira do artista plástico soteropolitano, há uma reunião de sua produção múltipla, instigante e popular. Tal qual uma narrativa teatral, está organizada em atos, encontrando-se no primeiro de três. No térreo do Casarão encontram-se as artes visuais divididas em pinturas, instalações e objetos. O segundo (previsto para maio) tem foco no “designer”, reunindo cenários, cartazes, tecidos de blocos afro e figurinos elaborados por J., no andar superior do mesmo espaço. 

Já no terceiro, o artista se fará presente para produzir duas obras na área externa do MAM, onde o público poderá acompanhar o processo ao vivo e a cores. Muitas cores, por sinal!  A iniciativa faz parte do estreante Programa Processos Compartilhados, cuja proposta é apresentar um novo formato de composição onde o artista é protagonista junto a obra, e há a participação direta do público no processo, o que deixaria Dona Lina orgulhosa.

Encantamento antropofágico

Uanga, palavra oriunda do quibundo, língua falada em Angola, significa feitiço ou encantamento. A expressão é deveras apropriada à exposição, não apenas pelo fato do artista ser descendente direto de angolanos, mas por seu apelo imagético conversar com o mais desinteressado pelas artes visuais. É tudo majoritariamente colorido, chamativo e instigante. E o mais importante é que não é tudo apenas sobre a cor.

Cópula, J. Cunha

Para um olhar superficial, as composições são consideradas bonitas (“que lindo”, foi uma das expressões que mais ouvi do público enquanto observava a instalação). Para um olhar mais atento, abre-se um campo profícuo de descobertas simbólicas, imagéticas e poéticas. Há uma multiplicidade de palavras e versos sob as matizes, o que demanda tempo para leitura acurada. ‘Uiratauá sanhaçu japim rouxinol’ são alguns dos verbetes pintados em um dos pássaros da obra ‘Cópula’ (s/ data).

Os oratórios também escondem versos como ‘O asfalto são rios de passado que a gente passa por cima’, diluído em meio às imagens. Elementos da cultura afro-baiana, indígena e sertaneja são amalgamados numa arte ecumênica na qual os santos e orixás convivem e dialogam. Além da descendência angolana, Cunha também traz os indígenas kiriri e os cangaceiros do sertão em sua ancestralidade diversa. Esse caldeirão de genes encontra culminância numa arte antropofágica.

Simplicidade e política

Ainda nessa miríade de possibilidades, a arte de J. também se faz do simples. São santos desenhados em colheres de pau, estádios olímpicos em pratos de barro, e até a piaçava de uma vassoura foi transformada em saia para a sambista Dona Dalva. A guerra de Canudos, o cordel e o quilombo de Palmares são temas retratados em algumas obras que foram expostas no MAM há mais de 50 anos, e voltam devidamente restauradas.

Contudo, na simplicidade, o artista se manifesta politicamente, e aí também mora o feitiço. A exemplo disso são as ratoeiras pintadas com as palavras arte, cidadania, direito, trabalho e política. Campos sociais que sempre podem estar por um triz; basta morder a isca e cair na armadilha, como quase aconteceu com o Brasil nas eleições de 2022.

Colunista Lucas de Matos na exposição

Sem dúvida, é uma exposição para ver e rever. Mergulhar no universo de cores e conceitos proposto pelo artista, é aprender através do encantamento propiciado pela arte que valoriza a cultura popular. Se apenas o primeiro ato já possui potencial para despertar novos olhares, os atos vindouros vão enriquecer ainda mais. Vale a pena deixar-se enfeitiçar!

O quê: Exposição ‘UANGA’ – J. Cunha
Quando: de terça a domingo, das 13h às 18h
Onde: Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM), Solar do Unhão

Gratuito

 

 

 

 

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Lucas de Matos

Olá! Eu quero te dar as boas-vindas à minha coluna. Sou um comunicador baiano que ama falar sobre gente, e por aqui você vai encontrar muito assunto sobre cultura, comunicação, dicas de leitura, e mais. Sou autor de 'Preto Ozado', livro que já vendeu mais de 1.600 exemplares e se tornou um minidocumentário. Viajo pelo Brasil em atividades literárias, participando de festas como FLICA, FLIP e FLIPELÔ. Falo sobre cultura para meus 22 mil seguidores no Instagram! Vamos conversar? 💬

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