‘Museu do Sarney’ intriga e conta apenas parte da história do ‘melhor governador’

Em museu mantido pelo atual governador do Maranhão, uma das placas diz que ex-presidente “deixou legado jamais alcançado por outro governante”

Guilherme Soares Dias

Um busto na entrada, os carros da época da presidência, os presentes que ganhou como autoridade máxima da República, uma foto ao lado dos ex-chefes de Estado, a assinatura na entrada do museu, o perfil como governador do Maranhão, presidente do Brasil e imortal da Academia Brasileira de Letras. O Museu da República Brasileira (MRB), em São Luís, até mudou de nome em janeiro deste ano, mas continua a ser o Museu Sarney, como era denominado antes de Flávio Dino (PCdoB), rival da família, assumir o governo.

É uma exposição permanente mantida pelo Estado do Maranhão em prédio público que se preza a contar a história do ex-presidente, mas que não manda a real sobre o seu passado. Lá você não fica sabendo que Sarney e seu bigode resistiram da ditadura ao governo Dilma fazendo costuras políticas e até mudando o domicílio eleitoral para outra unidade federativa – o Amapá – para continuar se elegendo; que a família e seus aliados governaram o Estado por quase cinco décadas; que apesar de assinalar em seu busto que o Maranhão é “sua terra, sua paixão”, o deixou permanecer como a região com os piores indicadores sociais do país.

O acervo do museu foi doado oficialmente por Sarney quando a filha Roseana exercia seu último mandato como governadora em 2011. Era também a derradeira chance de ele ter esse prestígio. A filha do coronel maranhense já tinha perdido as eleições em 2010, mas foi conduzida ao cargo após a chapa do governador eleito Jackson Lago (PDT) ter sido cassada, acusada de compra de votos e abuso de poder na campanha.

Os Sarneys sempre conseguiram se safar de acusações desse tipo. Mesmo assim foi uma administração difícil para a sucessora política da família. Sem apoio popular e enfrentando um câncer, ela desistiu de tentar a reeleição. Viu o candidato apoiado pela família perder e se recusou a passar o cargo. Afinal, quem vai continuar mandando aqui?

Saiu do Palácio dos Leões – a sede do governo e residência do líder do executivo estadual – poucos dias antes do fim do mandato para cuidar da saúde e da família. Coube ao presidente da Assembleia Legislativa, Arnaldo Melo (PMDB), a missão de transferir a faixa de governador para o novo mandatário que é filiado ao partido comunista. O vice de Roseana, Washington Oliveira, tinha renunciado ao cargo um ano antes para assumir uma vaga no Tribunal de Contas do Estado.

‎‎Sarney se elegeu governador do Maranhão pela primeira vez em 1966. Um curta brilhante de Glauber Rocha registra o momento da posse e o discurso de mudança defendido pelo líder político. Com palavras difíceis, ele é ovacionado em praça pública pela população que acredita nas melhorias prometidas para o Estado. Vi ‘Maranhão 66’ (assista abaixo) pela primeira vez ao alugar um DVD de “Terra em Transe”. O curta foi exibido na sequência do filme mais famoso do diretor baiano. Parecia mesmo uma continuidade da ficção. O político representado por Paulo Autran e Sarney guardavam muitas semelhanças…

Em 1985, no processo de redemocratização do país, ele se candidatou a vice-presidente ao lado de Tancredo Neves. Tancredo adoeceu e morreu. Sarney assumiu. Foram anos de inflação alta, planos econômicos equivocados e lembranças de uma tal fila do leite para conseguir comprar um produto tão básico. Quem viveu na década de 80 tem traumas dessa época até hoje.

Mas são os anos áureos em Brasília que estão expostos no museu. A maior sala de exposição exibe presentes que Sarney ganhou quando presidente. Louças, estátuas, miniaturas de barcos entre outros estão dispostos na sala. São cerca de 5 mil peças museológicas entre arte sacra, esculturas, gravuras, trajes oficiais, medalhas, condecorações e objetos dados por populares ao presidente.

No acervo, ainda estão fotografias, material audiovisual, mais de 25 mil textos, entre edições de livros raros, além de cópias de documentos presidenciais. Alguns dos documentos de Sarney – como identidade e título de eleitor – foram recolhidos à reserva técnica do museu quando Flávio Dino assumiu o governo. Segundo os monitores, o material não tinha relevância pública para ficarem expostos. Na época, a notícia do fechamento do museu chegou a ser anunciada, mas foi desmentida com a reabertura e com a mudança de nome.

Um dos quadros do museu explica o que é um chefe de Estado e parece querer definir o que Sarney sempre procurou ser:

Em sua carreira política, o ex-presidente se dedicou, justamente, à continuidade do exercício. Além de governador e presidente da República, foi presidente do Senado até fevereiro de 2013. Em 2014, após 60 anos de vida política, terminou seu último mandato de senador já pelo estado do Amapá. Mas Sarney nunca saiu do Maranhão. Lá comandava a TV Mirante, afiliada local da TV Globo, além de rádios e do jornal O Estado do Maranhão e influenciava nas eleições para prefeito, governo do Estado e Assembleia Legislativa.

“Com uma campanha moderna na TV, percorrendo o Maranhão de ponta a ponta e conhecendo de perto os graves problemas sociais do Estado, Sarney vence as eleições de 1965. O ‘Maranhão novo’ proposto durante a disputa eleitoral surgia com a construção de estradas, eletrificação, a construção do Porto Itaqui, da barragem do Bacanga, da ponte José Sarney, a chegada da primeira experiência de ensino a distância no País e outros avanços cuja importância ecoa até os dias atuais”, diz um dos vários quadros do museu.

E o melhor vem na conclusão do texto exposto no museu: “Sarney deixou um legado de obras e realizações, jamais alcançado por um governante em um Estado brasileiro.”

Para além da política, a sala dedicada a Sarney destaca sua presença na literatura. A capital maranhense é descrita como a “Atenas brasileira”. As inscrições do museu falam da grande efervescência cultural e literária da cidade durante o século XIX. O texto diz que até os dias atuais São Luís é conhecida como “Terra de poetas”. “Em todos os movimentos literários do Brasil, o Maranhão foi presença destacada. Neste ambiente fértil de tradição literária, José Sarney surge com a singularidade de conseguir conciliar, ao longo dos anos, a atividade política com a literatura”.  Um quadro na sala dedicado a Sarney ainda explica o que é um “honoris causa” para destacar os títulos de doutor concedidos quando ele era presidente. A toga usada pelo ex-presidente em cerimônia de concessão do título está exposta, assim como alguns dos livros que ele escreveu.

Para fora dos muros e salas do museu, São Luís tem uma beleza abandonada. No centro histórico, uma mistura de auge no passado e decadência no presente se complementam. É história a céu aberto que ladeia as vielas de paralelepípedos irregulares com construções subaproveitadas. Neste cenário fica o Convento das Mercês, que desde janeiro de 2015 é o Museu da República Brasileira.

O site do museu conta que o prédio começou a ser construído em 1654, quando chegaram à São Luís seguidores da ordem das Mercês e ergueram uma construção em taipa coberta de palha. No ano seguinte, em terreno adicional, reedificaram as instalações em pedra e cal, construindo a capela-mor.

Após a independência do Brasil (1822), ocorreu um processo de esvaziamento do imóvel que resultou em seu abandono. Em 1905, o antigo convento foi vendido para o Governo do Maranhão. O prédio passou a abrigar o quartel da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, que permaneceram ali até o final da década de 1980, quando os batalhões foram transferidos. Com a saída dos quartéis, o imóvel passou por reformas (1987-1990). O site do museu ressalta ainda que “hoje, o Convento das Mercês é detentor de um rico acervo museológico e bibliográfico e foi considerado um dos Sete Tesouros de São Luís”.

Entre os objetivos da Fundação do Museu da República Brasileira (FMRB), que administra o local e é vinculada à Secretaria de Educação do Estado, está: “a guarda, a preservação, a organização e a divulgação os acervos documentais, bibliográficos, iconográficos e artísticos do Patrono da Fundação, José Sarney”.

‎Questionada sobre o foco da exposição e placas que destacam Sarney como o “melhor governador de todos os tempos”, a chefe de museologia e acervologia da FMRB, Svetlana Farias, afirma que o local deve passar por reformulação. “As placas não foram mudadas. Elas serão refeitas, mas isso depende do trâmite burocrático e de verba. Ainda vamos decidir o que vai permanecer aqui”, disse. Ela tentou fugir da polêmica do local não expor fatos sobre a história desse líder controverso. “Hoje o nosso foco é falar de outros momentos da república brasileira”, limitou-se a dizer reiteradas vezes. A mudança das placas que exaltam o ex-presidente, no entanto, ainda não tem previsão de ocorrer. A fundação abriga hoje 32 funcionários, sendo 12 diretamente no museu. Farias não soube especificar o número de visitantes em 2015, nem o custo do museu ao Estado. A Calle2 também procurou Sarney para saber porque decidiu ter um memorial público – portanto mantido com recursos públicos – e não uma instituição ou fundação privada (como fizeram Lula e FHC, dois outros ex-presidentes que têm espaços em sua memória, mas custeiam sua manutenção). Não houve resposta.

Até 2014, cerca de 70 mil pessoas tinham visitado o museu em seus dois primeiros anos de atividade. A grandiloquência dos Sarneys também está presente na descrição da página do Convento das Mercês. A Fundação do Museu da República Brasileira administra mais de 40 mil itens e, segundo o site, é “um dos mais importantes acervos da memória política contemporânea do país”.

Do passado para os dias atuais, outra coisa que você precisa saber sobre o museu, e que nem a página na internet nem os monitores te informam, é que é preciso tomar cuidados em seu entorno. Sofri uma tentativa de roubo nos arredores e consegui me safar, mas ouvi casos de quem não teve a mesma sorte e perdeu o celular, a carteira…

Pela cidade, além da ponte e do bairro com seu nome, Sarney ainda é onipresente, mas as pessoas tentam esquecê-lo. Já no aeroporto de São Luís, com passagens em punho para voltar a São Paulo, tentei ver se a presença do maranhense mais influente era forte também na literatura. Na única livraria do local, não havia livros de Sarney pra vender. “Tinha só um, que era uma biografia sobre ele, mas não tem mais”, informou a vendedora.

Ninguém parece nutrir boas lembranças sobre a administração dele. Das cinco pessoas que questionei sobre o ex-presidente, nenhuma falou bem de Sarney. “Deu o que tinha que dar. Eles foram muito ruins para o Estado. As pessoas cansaram deles. Essa família não volta mais ao poder”, sentenciou o taxista que me levou para o aeroporto. Mas essa não é a lembrança que o museu reproduz para as novas gerações e quer te fazer guardar.

‎SERVIÇOMuseu da República Brasileira. Rua da Palma 502, Desterro. São Luís. Fone: (98) 3232-7840. Abre de segunda a sexta-feira, das 8h às 19h e sábados das 8h às 12h. A entrada é gratuita. 

Publicado originalmente na Calle 2.

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Redação

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