Abolição no turismo: o barulhento silêncio do racismo

Maio é o mês em que foi declarada e assinada a abolição da escravatura no Brasil. Este fato desde o princípio não recebeu muita credibilidade, pois aconteceu apenas para ceder à pressão mundial pelo fim do trabalho escravizado, pois éramos o único país a manter esta mazela. A “liberdade” dos negros escravizados aconteceu sem nenhuma inclusão social, sem acesso a direitos básicos de cidadania como saúde, educação, moradia e voto.

Nós, negros brasileiros, tivemos e temos que construir a nossa inclusão do nada, ainda com muitos obstáculos que o racismo estrutural impõe. Não esqueço a sábias palavras do griô Antônio Pitanga para o Guia Negro Entrevista em que disse que no Brasil precisamos passar pela verdadeira abolição.

O afroturismo tem conquistado espaços importantes nos principais eventos do turismo, nos meios de comunicação dentro e fora do setor, aumentando sua visibilidade e alcançando cada vez mais pessoas, mas ao mesmo tempo ainda estamos muito distantes da inclusão que desejamos no turismo, principalmente pela falta de apoio as nossas inciativas e também pela falta de profissionais negros a frente das iniciativas que possuem este apoio e estrutura.

Nossa voz está sendo ouvida, mas as ações efetivas são lentas para uma pauta que é urgente, pois devido a pouca conscientização da importância da inclusão racial no setor, turistas negros e antirracistas estão vulneráveis ao racismo durante suas viagens ou eventos. Infelizmente, a maioria das empresas do turismo correm o risco ao invés de investir na prevenção.

Pesquisa recente do PoderData aponta que 81% dos brasileiros disseram que presenciam casos de racismo com frequência. Quando vejo este dado e penso no turismo, realmente me incomoda a lentidão ou até omissão das ações inclusão racial no setor, pois a exposição ao risco é enorme visto que a atividade turística consiste em atendimento e contato humano praticamente o tempo todo. Se temos pessoas que não foram treinadas ou pelo menos conscientizadas, a probabilidade de acontecer uma atitude racista no atendimento ou na interação com outros turistas é enorme, visto que pessoas negras são 56% da população brasileira. Parece muito óbvio tudo que escrevi, mas ainda com esta análise básica, as ações de inclusão racial no turismo são mínimas. E esta omissão começa a ser expostas pelos casos de racismo que foram denunciados recentemente.

Dos vários casos que aconteceram recentemente, vou destacar três para exemplificar o que escrevi acima. Sarah Aline foi uma das participantes com maior visibilidade na edição do reality show BBB 23, a edição com maior número de participantes negros. Mesmo no auge da sua visibilidade, pós eliminação, seu pai, Vagner Rodrigues, mesmo já hospedado no hotel, foi interrogado pelo segurança do meio de hospedagem, pois não acreditou que ele era hóspede.

Adriana Santiago, mulher negra, gerente de um restaurante no Pelourinho, centro histórico de Salvador, foi ofendida por uma cliente branca insatisfeita com a qualidade do azeite que disse “… preta deste jeito você não pode ser gerente” . Adriana prontamente chamou a polícia, que lamentavelmente não classificou como flagrante a injuria racial e após depoimento, a racista foi solta.

No voo de Salvador para São Paulo, Samantha Vitena, mulher negra, foi expulsa do voo por não despachar sua mochila com seu notebook. A tripulação se negou a ajudar acomodar sua bagagem, enquanto outros passageiros ajudaram a acomodar a mesma e após o problema solucionado, o comandante ordenou sua expulsão acionando a Polícia Federal alegando que ela apresentava risco ao voo.

Eliane Hazin, mulher branca que registrou o ato racista e foi testemunha da Samantha informou que outra passageira, mulher branca, acomodou três bagagens de mão, ignorando ordem da tripulação para acomodar uma embaixo do banco. Comum em todos os casos até o momento: impunidade ao racismo que foi praticado.

O racismo no turismo é cada vez mais “barulhento” devido as denúncias que aumentarão dia a dia, pois parte da nossa sociedade é racista e não deixa de ser quando está praticando atividades turísticas. E os preconceituosos, principalmente, os racistas têm se mobilizado para afirmar e manter a estrutura racista da sociedade. Quando acontecem casos, eles rapidamente agem para negar, descredibilizar e quando não conseguem por serem casos absurdos, contam a impunidade que habitualmente acontecem com a cumplicidade de boa parte da nossa sociedade.

Falar sobre racismo no Brasil ainda é complexo, pois lidamos com a negação histórica de muitos fatos e de como agir com a reparação, principalmente social, para a população negra brasileira. E a omissão ao tema é a pior escolha, pois o ” barulho ” dos casos de racismo será grande, pois somos a maioria da população. Nós negros estaremos inevitavelmente em todos os lugares e levantaremos nossa voz contra qualquer atitude racista.

O “silêncio” dos órgãos públicos , da grande maioria das associações, entidades de classe, empresas e lideranças do turismo sobre ações mais efetivas de conscientização da importância da inclusão e diversidade racial no turismo se tornará cada vez mais inútil e se persistir , vai se tornar cumplicidade com práticas racistas.

Nenhum preconceito se resolve “organicamente” , não dá mais para acreditar que no turismo ” todos são tratados igualmente “, pois não somos iguais , somos plurais e diversos em vários sentidos. O turismo será verdadeiramente inclusivo quando tiver ações para efetivar esta inclusão , diversidade e pertencimento. Para isto acontecer, precisamos de profissionais pertencentes a estes grupos no comando destas ações. E as mesmas precisam acontecer com urgência , pois novembro precisamos celebrar o que foi feito e não lamentar o que não aconteceu.

A cada problema que surge , apresenta a oportunidade para realizarmos a verdadeira abolição do racismo no turismo brasileiro. Nós do afroturismo estamos a inteira disposição para promover a mesma. Lideranças do setor precisam fazer a sua escolha. Continuar no silêncio cúmplice ou ser agente de mudança em prol do combate do racismo no turismo.

LEIA MAIS:

Como a hotelaria pode ser antirracista?

 

Compartilhe:
Avatar photo
Hubber Clemente

Negro, paulistano, que ama sua cidade, principalmente o centro, local de importância histórica e ancestral para o povo negro, onde também fica sua escola de samba do coração, a Vai Vai. Hoteleiro por vocação e paixão, com mais de 22 anos de carreira no setor. Ativista, militante, divulgador do AFROTURISMO como caminho de inclusão racial, diversidade, resgaste histórico e conexão ancestral por meio do turismo, visando uma sociedade melhor e a mais justa. Fundador da iniciativa Negros e Pretos Afro Turismo Afro Hotelaria, Co fundador Papo de Hoteleiro ,integrante da comunidade de inovação Inovadores Inquietos, Coletivo pelo Afroturismo, do Comitê da Diversidade no Turismo e apoiador de parcerias do Coletivo Quilombo Aéreo

Artigos: 11

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *