Concurso que elege rainha do carnaval do Ilê Aiyê é ato político e cultural
Texto: Guilherme Soares Dias/Fotos: Heitor Salatiel
Noite de exaltação à mulher preta. Há reconhecimento, autoestima, beleza, identidade, mas sobretudo um ato político. Essa é a noite da Beleza Negra, quando o bloco afro Ilê Aiyê, o primeiro do Brasil, elege sua deusa do ébano, a rainha de seu carnaval. A criação do bloco em 1974, foi um ato político, já que só negros podiam entrar, na contramão dos outros blocos que de forma velada não aceitavam pessoas de cor preta.
Em sua 40ª edição, a noite da beleza negra está longe de ser um concurso de miss. A competição é baseada em noções afro-cêntricas de beleza, em contraponto aos padrões vigentes de beleza no Brasil. Vence quem dança e representa melhor a cultura afrobrasileira. É uma noite de gala não só no palco, mas para o público que lota a Senzala do Barro Preto, sede do Ilê no Curuzu, bairro da periferia de Salvador.
Por conta do evento, a famosa e íngreme ladeira do Curuzu ficou tomada por pretos bonitos. Cada um com seu traje elegante, com seu brilho, seu búzio adornando assessórios, cabelos para o alto, blacks, turbantes e estampas africanas. Do vendedor de ingressos à produtora da equipe de TV, que ficará apenas nos bastidores, todo mundo é bonito aqui. O sentimento antes de começar a noite é um misto de felicidade e nervosismo. Tinha muita coisa por vir, para ver, para entender e compartilhar.
O concurso movimenta o bairro. Os bares estão cheios. No comércio ao lado da Senzala do Barro Preto, além de cerveja é servido feijão. Das janelas, casas se empilham em terrenos irregulares. Algumas luzes estão apagadas, mas muitas esperam acordadas um dos dias mais movimentados do bairro do mais belo dos belos dos blocos.
Espetáculo. O show começa com os tambores do Ilê tremendo dentro da plateia e abrindo passagem para as bandeiras do bloco. Esse rufar é a energia vital que coloca o público no clima da noite. “Lá vem os negros do Ilê”, diz uma das canções. Outra canta “Negra poderosa do Ilê. Tudo que é bonito é para se mostrar”. O salão está tomado por um festival de cores, mas dominam o dourado, o vermelho, o branco e preto, cores do bloco. A homenagem a Exu é feita pelo ator Fábio Santana e acompanhada de bailarinos. Um deles surge correndo careca palco afora, roubando a cena.
De São Paulo, Bia Ferreira apresenta seu rap que viralizou na internet. “Preto não é esmola, vamos reinar como Zumbi e Dandara. Cota não é esmola. O povo preto veio revolucionar”, entoa, arrancando gritos da plateia. As deusas de anos anteriores dançam uma música que diz “que negra é essa. Essa negra é o Ilê. Mundo negro quer dizer Ilê Aiyê”.
Taís Carvalho, 38 anos, que ganhou o concurso em 2002, diz que é uma deusa ativa. “Há quatro momentos da minha vida que nunca vou esquecer: o nascimento do meu filho, minha iniciação no candomblé, quando fui eleita deusa do ébano e o carnaval daquele ano”, enumera. Taís lembra que todo ano é eleita uma nova deusa, mas que cada uma passa para outra o manto e não a coroa. “Então, todas nós continuamos deusas e levando isso para frente”, afirma.
A filha de Jimmy Cliff, a cantora e atriz Nabiyah Be – presente no elenco do filme Pantera Negra – participou com a canção “Ser Mulher”, escolhida também para fazer uma homenagem ao seu compositor, o jovem cantor Roy (ex-vocalista da banda O Círculo), falecido no último mês de janeiro.
O Ilê é tão envolvente que o show não ocorre apenas no palco para o público ver. Mesmo nos bastidores as pessoas dançam e cantam as músicas. Letras e coreografias estão na ponta da língua, nas mãos que se mexem, nas ancas que circulam.
Candidatas. O tema desse ano do Ilê é “que bloco é esse?” em comemoração aos 45 anos do bloco e um de seus principais hinos, que durante a festa foi cantado por Lazzo Matumbi, um dos maiores intérpretes baianos vivo. Cada candidata tem uma roupa especial, adereços e representam o tema de uma maneira diferente. Em comum, cabelos para o alto, brincos grandes, o dourado, o vermelho, búzios e palha. Mas cada uma traz um elemento especial, representa uma rainha, uma história, um momento do bloco ou uma simbologia diferente.
Durante as apresentações, papéis dourados picados explodem sobre as candidatas e faixas com os nomes e rostos delas se erguem na plateia. Cada uma vem com sua torcida. Lumena Aleluia (foto acima) trouxe Marielle Franco (vereadora do Rio assassinada em 2018) em uma faixa ressaltando o tom político da festa. Ela ergueu a plateia e emocionou o público com sua homenagem. Foi estranho Lumena não ter ficado nem entre as três finalistas.
Quando Carla Dandara, 25 anos, entrou no palco a mãe Sandra Nascimento, 55 anos, começou a chorar compulsivamente de forma contagiante. “Para mim, ela já é a deusa. Ela é a minha deusa. É o meu orgulho, minha amiga. Sempre me ajudou”, conta ainda com lágrimas nos olhos após a apresentação da filha. Carla estava tranquila antes da apresentação. Ela foi a primeira das candidatas a ficar pronta. “É uma mistura de sentimentos. Eu vim representando uma rainha da Nigéria”, afirma, com uma lança em punho.
Apesar do desejo de ver a filha campeã, Sandra torcia também por Daniele Nobre. “Ela concorre pelo oitavo ano. Tem muita garra. Queria que ela ganhasse”. Do bairro do Bonocó, Daniele entrou com cabelo moicano em espiral, com pequenas luzes de led e búzios e um sorriso contagiante. Deusa pintora, ela foi conquistando o público com sua dança.
Não deu outra, sagrou-se campeã e mostrou que resiliência é mesmo a palavra de ordem desse bloco. “Nunca pensei em desistir. Eu parei no ano passado, para me preparar melhor. Voltei pensando que queria que fosse diferente e os orixás me iluminaram. Consegui melhorar minha dança, vir com uma roupa e cabelos que conquistaram os jurados. Agora é representar essa beleza e empoderar outras meninas”, almeja ela.
Família real. Empreendedora e secretária, Daniele tem 30 anos, mora no bairro do Bonocô e é filha de ossain no candomblé. Ela trazia um quadro com mãe Hilda, idealizadora do bloco, no centro com uma pomba; Antônio Carlos Santos, conhecido como vovô do Ilê que é presidente do bloco; e Dete Lima, figurinista e diretora do bloco. O sucesso do Ilê fez com que seus diretores se tornassem uma espécie de família real negra, respeitada e cultuada no bairro. Além dos presentes no quadro incluem-se Arany Trindade, que é secretária de Cultura do Estado da Bahia, Hildelice Santos, atual mãe de santo do terreiro Ilê Axé Jitolu, e Vivaldo Benvindo.
A apresentadora do concurso em 2019 foi a produtora Val Benvindo, filha de Vivaldo. “Eu cresci dentro desse concurso. Me lembro de pequena olhando para essas rainhas, usando roupas exuberantes. Isso fez com que nunca quisesse alisar o cabelo, ser branca, ou esconder minha religião. Cresci no meio de mulheres negras poderosas, como Arany, Hildelice, Dete. Sempre quis ser deusa do ébano, mas sou da família e não podia, então, entrei para produção”, contextualiza.
Val acredita que ter uma história que se confunde com a do concurso a tornou uma mulher que sabe o que quer. “Para grande parte da população preta não é assim e isso inclui os homens. O concurso tem cumprido o seu papel de aumentar essa valorização”, avalia. No palco, Val lembrou ainda de um outro fato histórico que ocorria no mesmo momento do concurso: pela primeira vez, uma mulher negra apresentou o Jornal Nacional, da TV Globo, o mais assistido do país. Maria Júlia Coutinho, responsável por apresentar a previsão do tempo no telejornal assumiu a bancada substituindo os titulares neste sábado (16).
Resistência. O professor Hélio Santos, presidente do Instituto Baobá Diversidade, lembrou, em vídeo exibido durante o concurso, que essa resistência é a marca do Ilê e carrega um tipo particular de conhecimento. “É um modelo de beleza, de autoestima, de unidade. Sem nenhuma pedrada, o Ilê fez a maior revolução desse país, que não é política, mas cultural”, ressalta.
O presidente do bloco, Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê, lembra que a cada ano há uma dificuldade para sair no carnaval. “Os empresários precisam repensar a distribuição de verbas. Isso só vai mudar quando nós negros assumirmos o poder. Organizações como o Ilê Aiyê precisarão se comportar como partidos políticos, para deixarmos de ter esse apoio pífio e continuarmos essa construção de transformar essa cidade na real ‘Roma Negra’”.
Gilberto Gil canta seus grandes sucessos vestido de bermuda, sandália de couro e camisa divertida com estampa de frutas. Em entrevista ao Guia Negro, Gil afirma que a festa representa uma manifestação espontânea e legítima do segmento social baiano. “O Brasil apesar da escravidão, da falta propriamente dita da abolição que ficou por concluir, absorveu muita coisa da contribuição das várias Áfricas. O Brasil é hoje, fora da Nigéria, a maior população negra no mundo. Essa é o lado luminoso dessa presença do negro, embora tudo isso esteja submetido a um certo empenho, de resistência”, considera.
O cantor que foi ministro da Cultura lembra que as dificuldades que passaram os escravos, de uma certa medida, se mantiveram em seus herdeiros. “Não encontraram inclusão suficiente e apropriada no Brasil. E há o preconceito que é um sentimento que ainda turva essa presença negra no Brasil. A resistência está aí, em tudo, na canção…Se a gente compara com os tempos pós-escravidão, tudo que decorreu no século 20, por um certo lado você tem avanços que foram conseguidos, por outro lado tem ainda a permanência de uma dificuldade”, afirma.
A Bahia, ressalta Gil, sempre foi polo de resistência que também inclui o carnaval de Salvador. “Isso está no bloco afro, no candomblé e tudo que ele significa. Esse sentimento de confiança no amor, na solidariedade, na amizade, que o candomblé defende com muita garra é uma das formas mais importantes de resistência no Brasil”, considera.
Racismo estrutural. Nessas linhas finais, é preciso registrar que a perfomance e possíveis polêmicas relacionadas aos cantores brancos que se apresentaram durante a noite da beleza negra não ganharão espaço nesse texto. Assim como o também baiano Luiz Gama, advogado, jornalista e patrono da abolição no Brasil, relegou ao seu pai que o vendeu como escravo o esquecimento, achei que essa era a melhor forma de protestar o fato das atrações principais terem sido cantores brancos, que se aproveitam da cultura negra, mas pouco reconhecem seus privilégios e se dispõem a estar na luta contra o racismo estrutural.
Racismo esse que foi o mote do nascimento do Ilê, que dá força ao bloco e que confere tanta importância a essa noite de valorização da beleza negra. Um evento que é muito mais do que uma noite. Faz com que todos saíamos de lá se sentindo também um pouco deuses do ébano. E somos!
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Festa linda e emocionante! Me senti um pouquinho lá…
bacana que curtiu!