“Eu que vinha de outras terras, tratando das minhas feridas trazidas de uma vida aflita. Meus traumas, Freud não explica”¹. Os versos de Mateus Aleluia nos levam a refletir sobre o tema da saúde mental para pessoas negras: como tratar dessas subjetividades que trazem as marcas de um processo diaspórico, com referenciais que não explicitam isso? Os temas tratados pela psicologia ainda estão embasados em uma lógica colonial, normativa e embranquecida?
Essas questões são abordadas no livro ‘Clínica do Impossível: Linhas de Fuga e de Cura’ (Editora Telha, 2021), do psicólogo carioca Lucas Veiga, um dos expoentes da psicologia preta no Brasil. Em sua estreia literária, Veiga traça possibilidades para a experiência clínica com pessoas negras, tomando como ponto de partida a história familiar de seu avô, que conseguiu escapar da clínica psiquiátrica. Num ato sankofa (símbolo dos povos adinkra da África Ocidental, que significa voltar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro), o Mestre em Psicologia Clínica salienta: “Minha vida e este livro foram possíveis de existir por causa de sua fuga”.
A fuga equivalente à possibilidade de existência é um marcador da ancestralidade afrodiaspórica, e os quilombos são prova disso. Na contemporaneidade existem práticas de aquilombamento, e uma delas é a saúde mental para pessoas negras, tema estudado com profundidade por Veiga desde 2015, quando começou a trabalhar com jovens, majoritariamente negros, num programa de acolhimento de adolescentes em situação de rua e que faziam uso abusivo de drogas. Nessa busca apareceram nomes de psicólogos como Wade Nobles e Frantz Fanon, fundamentais para a régua e compasso do tema de estudo que tornou Lucas referência em território nacional.
Por meio de artigos científicos e escritos do diário clínico, o escritor desenha roteiros decoloniais para falar de saúde mental. Mas se engana quem pensa que a obra é puramente acadêmica ou apenas sobre a clínica. Veiga consegue misturar temas inusuais como arte e psicologia ao falar de performance, aproximar-se do universo pop em textos como ‘E se eu fosse a Beyoncé’, e ainda há espaço para a divagação poética em ‘Como criar para si um corpo descolonizado’. Sobretudo, o autor coloca seus próprios marcadores sociais, como no texto ‘As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no Brasil’.
E falando no Brasil, Lucas se mostra atento ao contexto atual do país, quando aborda que o sofrimento psíquico não é um problema íntimo; é político e coletivo. Afinal, não há como falar de saúde mental sem levar em consideração um panorama de amplas desigualdades sociais, retirada de direitos, cerceamento das liberdades, falta de justiça e racismo. Ouvir o paciente perpassa por escutar o mundo em que ele se insere. E é por isso que o autor tematiza a pandemia de Covid-19 e seus possíveis efeitos na produção de subjetividades. “Dar poucos ouvidos ao mundo talvez tenha sido um dos grandes erros da história da psicanálise”, enfatiza.
Os traumas que Freud não explica, Lucas aponta. Não apenas por seu estudo, mas por seu lugar de fala e vivência. São paradigmas éticos, estéticos e políticos que perpassam uma forma decolonial de tratar e lidar com corpos atravessados por uma experiência secular, que ecoa nos tempos atuais, produzindo efeitos adoecedores, como o auto-ódio. É necessário produzir uma sabedoria de modos de vida ligados à ancestralidade africana. E por isso que, onde queres o complexo de Édipo, Veiga sugere o complexo de Nanã: sermos maleáveis, moldáveis, para assumirmos a reconstrução e produção de discurso da nossa história.
Já que o fim imediato do racismo é impossível, a clínica com as pessoas negras é uma clínica do impossível, e aí se insere o seu paradoxo. Mesmo destituídos de tudo, os ancestrais se organizaram e se ergueram diante da crueldade da escravidão, para que pessoas negras pudessem ocupar todos os espaços e viver diga e plenamente. Continuemos esse legado. A fuga é contínua, é um “gingado existencial para manter a alta altiva”² como numa luta de capoeira, que também é dança. E assim Lucas nos lembra que além da dor, é preciso celebrar a vida, conceituando sob a benção de Nanã: feito a lama do mangue, é necessário se recriar. E, dessa forma, encontrar o caminho da cura. Salubá!
Clínica do Impossível: Linhas de Fuga e de Cura
Lucas Veiga
Editora Telha, 2021
122 páginas
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¹ Música ‘Fogueira Doce’, Mateus Aleluia
² Poesia ‘Preto Ozado’, Lucas de Matos
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